terça-feira, 6 de setembro de 2011

Teologia da Cruz: a coragem de dizer a verdade

Antonio Carlos Ribeiro

Recensão de WESTHELLE Vítor. O Deus escandaloso; o uso e abuso da cruz. Trad. Geraldo Korndörfer. São Leopoldo: Sinodal / EST, 2008.

O livro de Vítor Westhelle retoma um tema tão caro quanto pouco enfrentado na teologia cristã: a busca da verdade. É composto de dez reflexões profundas tendo como base a theologia crucis, de Lutero, tocando em temas teológicos, do conflito fé e razão aos diálogos com saberes oriundos de momentos pontuais da história da teologia, das filosofias de traço iluminista e existencialista, e da poesia e das artes, enfrentando o debate com os conflitos existenciais da civilização que mais invadiu, colonizou, explorou, dominou e matou, muitas vezes empunhando a própria cruz, e à qual, durante séculos tiveram que, penitencialmente, voltar.

Começa observando que a teologia da cruz não é uma doutrina, nem um discurso, mas um tema que, em chave analítica dialética teológica e cristã, remete à decisão existencial de olhar para a cruz, assumindo-a como Maria, a um só tempo impotente diante das circunstâncias e determinada a não se afastar e nem abandonar seu filho, e filho de Deus (teotokos), à violência ensandecida dos poderes políticos e religiosos. Olhando para a cruz, ela “contempla o mistério da vida, não com olhos românticos, mas com os olhos das pessoas profundas e comprometidas com a verdade, a justiça e a solidariedade”, como escreveu d. Mauro Morelli. E, na paixão desta sexta-feira começa o escândalo do Deus crucificado, arrastado séculos afora pelos cristãos, de todos os povos e das diversas tradições. O livro registra diálogos frutíferos e doloridos, fascinosum ettremendum, através dos retratos nas artes e das liturgias dos cultos.

A polaridade começa na própria forma de confrontar-se com o escândalo. Para uns ofende a razão, para outros cristaliza a falta de vontade e a servidão. A mesma morte que punha a religião em risco é recebida por Nietzsche como golpe de gênio do cristianismo. O uso da categoria símbolo abre diversos diálogos, começando pelas imagens e sua capacidade de eclipsar outras formas de compreensão e lembrança. Essa percepção confirma as noções de dor e sofrimento arraigadas na religião. O lado perverso é que a mesma cruz que simboliza a derrota, tornou-se o triunfo das cruzadas com Constantino e das conquistas do Novo Mundo, pelas quais ingressou no mundo da arte. Com a sublimação, reteve um potencial capaz de passar da realidade à representação. Lutero viu na cruz a reversão do próprio desconforto, denunciando a transformação da essência em aparência e as muitas cruzes que disfarçam seu desafio real: perturbar nossa compreensão do significado do amor no grito do abandonado.

O anúncio de Cristo como escândalo para os judeus e loucura para os gentios ajudou judeu-cristãos a compreender-lhe o destino. Para evitar a afirmação soteriológica, o sofrimento do servo de Javé não foi relacionado com a narrativa da paixão. Westhelle estabelece a relação contraditorial entre negação e afirmação: o martírio, como evento ultrajante ao Justo; o lugar, negando sua glória e epifania; a marginalidade da comunidade de fé, do ambiente político palestino e das comunidades, social e economicamente; o Deus que vem em seu socorro, se ausenta; não há como negar, o Senhor está morto! O conjunto de sua vida, do nascimento à morte, só faz sentido visto pela cruz (estrebaria, moscas e esterco; marginais, doentes, possuídos e despossuídos; e morte física e moral que varre o registro da existência). “Pois aquilo que Ele não assumiu Ele não redimiu, mas aquilo que está unido à sua Divindade também é salvo” (Gregório Nanzianzeno), e se nada está fora do alcance de Deus, Ele esteve e está onde se necessita a salvação: “fiquem cientes de que o Senhor não veio [...] para se exibir, e sim para curar e ensinar os que sofrem. [...] Criatura alguma, senão o ser humano, equivocava-se no conhecimento de Deus” (Atanásio) (p. 41). Busca apoio da Patrística oriental à poesia de Adélia Prado: “Ó crux ave, spes única Ó passiones tempore”, mas o escândalo permanece.



Para entender a cruz como tribulação Lutero substitui as regras medievais lectio, oratio, contemplatio por uma própria: oratio, como recurso a Deus ao perceber que a razão será insuficiente; meditatio, que inclui a lectio e envolve outras pessoas; e tentatio, que é a tribulação (Anfechtung) pela qual o-a teólogo-a da cruz deve passar para dizer as coisas como elas são. Westhelle acentua o fazer teológico de pessoas que gestam a prática (usus) de entrar na batalha contra o sofrimento e chocam a piedade moderna, com seu ‘meigo Jesus’, o apoio ao político ‘nascido de novo’ e amante de guerras, e dos evangelicais à espera de um arrebatamento que deixa os outros para trás, mas não entendem um monge medieval que teologiza: iusticia est cognitio Christi. Este usus dá coragem para arrancar a máscara e revelar a crise, valer-se da ironia para não sucumbir ao método analógico, definir a cruz como revelatio sub contraria speciee abandonar a razão como infra-estrutura para fé, da escolástica em sintonia com a jurisprudência e a economia dominantes. O escândalo só é mantido se for um espinho para os estatutos da razão. Lutero, que aceitou Aristóteles na política e na economia mas rejeitou na teologia (Heidelberg), só teve seu esforço reconhecido por Heidegger quatro séculos mais tarde. Já a apocalíptica surge com a coragem de dizer a verdade (parrhesia), sem poupar ninguém e nem guardar conhecimento para o último recurso. Theologus crucis dicit quod res est, até para não correr o risco da razão “assumir o controle e substituir a fé por explicações” (p. 66). Deixar Deus ser Deus, lembra David Tracy, “é deixar essa vertente terrível e numinosa de nossa herança cristã comum ser ouvida de novo com o tipo de clareza e coragem que Lutero encontrou em suas visões apocalípticas da história e em sua disposição de falar da abscondidade de Deus no sentido pleno” (p. 70), fugir de Deus e encontrar refúgio em Deus contra Deus.

A cruz, que passou do escárnio ao triunfo sublime e orgulhoso, recupera seu escândalo quando a Reforma desmascara a sublimação. Ao falar do auto-sacrifício de Deus como golpe de gênio do cristianismo, Nietzsche inaugura a onda de críticas da modernidade. O iluminismo alemão questionou as provas históricas: Jesus como cumprimento das profecias, confiança nos relatos de milagres e a expansão do cristianismo. Lessing disse que “verdades acidentais da história jamais podem se tornar a prova de verdades necessárias da razão” (p. 74). Schweitzer trocou a teologia pela medicina e a Europa pela África, após descrever Jesus como decidido a fazer a roda do mundo girar e, diante da recusa, se atirou sobre ela, que girou e o matou. Nietzsche viu na cruz a derrota sublimada numa moralidade de escravos que louva o derrotismo, glorifica a fraqueza e perpetua a vontade anêmica, polarizando compaixão e fervor, condenando a piedade como depressiva, chamando o cristianismo de ódio contra o espírito e os sentidos. Hegel referiu-se à 6ª feira santa como negação e à ressurreição como negação da negação, reafirmação da vida em um nível mais alto (Aufhebung). E Marx, que fez voltar o apocalipsismo depois de desencantar os céus do sistema absoluto hegeliano, criticar o consolo e arrancar os grilhões para a flor crescer, frente ao que Walter Benjamin ponderou: o trabalho do passado não está fechado para o materialista histórico e, sem esquecer os grilhões, lembrou que o sofrimento não tem sentido, mas têm um futuro aberto pela memória, a mesma que condena os poderes (J. B. Metz).

A epistemologia da cruz implica no conhecimento que vem dela, apesar da glorificação. Como a cruz só tem relevância na teologia quando conectada ao nosso sofrimento, com o significado ancorado no batismo e na eucaristia, podemos ver na cruz de Cristo a derrota do nosso pecado e o cancelamento da dívida (justificatio). Nas provações, “Deus nos impõe sua cruz para nossa salvação; o pecador é crucificado para que o novo homem surja” (p. 90) cita Regin Prenter. O discurso, como trajetória linguística, ao provocar impacto duradouro, impõe um mundo que faz sentido (poiesis), e, como Lutero em Heidelberg ou as teologias latino-americanas, luta com a afirmação em certo enquadramento, mesmo que rompa a moldura. O impacto não é causado apenas pela parrhesia, mas na autenticidade e na autoridade em que se estriba. Com a entrada de Jesus em Jerusalém a identidade messiânica não pode ser ocultada, e assim “a parrésia não produz qualquer efeito codificado. Ela abre um risco indefinido” (p. 98), lembra Foucault. Esse preço alto foi tornado princípio por Gandhi como insistência na busca da verdade: Satyagraha. No mundo tradicionalmente interpretado a cruz tornou-se dissonante, paradoxal, uma nomeação a partir do ponto de vista dos subjugados.

Ao dialogar com a poesia, Westhelle discute os efeitos da consciência ecológica, mostrando como há três décadas a natureza era apenas o humano, tida como sobrenatural. As reações ganharam expressões em formas conservadoras e liberais, obrigando a retomada da teologia da criação. As máscaras refletem o carnaval medieval, caricaturando a realidade, escondendo-a e mostrando-a em seu oposto. Como máscaras de Deus, os seres humanos interagem com as máscaras da criação. Recorre a Baillie para afirmar a presença visível de Deus como imediação mediada, não-visível, enquanto o visível pode tornar-se um ídolo que apenas congela numa figura o que a visão almeja num vislumbre, deixando o ícone como uma face aberta para ser transgredida, uma ausência manifesta no reflexo. As metáforas Deus vestitus (a experiência religiosa) e Deus nudus(o abismo irresistível) mostram a dialética entre a religiosidade e o próprio Deus. O apelo para deixar Deus ser Deus aponta para a limitação que nos possibilita também ser pessoas, e a poesia é a Palavra que vem de fora para reconstruir a realidade através da força criativa. Mas só vem se olharmos para o visível, o sofrimento dos inocentes. Se quisermos a Palavra pura fugimos do mundo, sublimamos a cruz, fazemos theologia gloriae.

A prática da ressurreição é possibilitar a voz às vítimas, podendo os abandonados reivindicarem seu poder. A experiência da liminaridade autoriza a autonomia e a reorientação, ponto de semelhança entre a Reforma e os movimentos de afirmação humana a partir da fé. O que torna uma pessoa teóloga é enxergar as coisas invisíveis através das visíveis e estas só podem ser vistas através do sofrimento e da cruz, insiste Lutero. Diante da cruz é possível: fazer teologia a partir dos crucificados, exigindo-se apenas que sejamos honestos a respeito do mundo, sem calar os clamores; escarnecer da cruz, com piedade que a torna dispensável; ficar distante da cruz, sem envolver-se com as cruzes cotidianas; e praticar a ressurreição, na confiança que a cruz não é o fim, mas nova oportunidade de trabalhar e amar. A “memória empática é capaz de abrir o passado fechado”, disse Benjamin a Horkheimer.



Recorre às faculdades humanas de Aristóteles (theoria, praxis e poiesis) para falar da cruz. A teoria, a primeira, é a ousadia de dizer o indizível, que faz da teologia a fé em busca, lembrando a abstenção para observar a obra. As demais, práxis e poiesis, introduzem o conflito binário que marca a tradição teológica eclesial: theologia e oeconomia, credenda e agenda, ortodoxia e pietismo, razão pura e razão prática, e na Teologia da Libertação, ortodoxia e ortopráxis. Menciona o desencontro da teologia política europeia, feita em sociedades afluentes no confronto com o socialismo real, e a teologia latino-americana, “que emergiu de um continente (...) sob regimes militares” (p. 138). A primeira, afirmando uma definição negativa de liberdade, e a segunda, uma noção atributiva de justiça, sintetizada na tensão entre Moltmann e Bonino.

A ligação da cruz com as coisas últimas remete ao debate do tempo em relação com o lugar e introduz a teologia de Tillich que, por nunca ter perdido de vista essas dimensões e as compreender pela via da cultura, acabou por pautar e datar sua obra. A Europa, por seguir incorporando as descobertas à própria lógica, foi vista por Hegel como “pura e simplesmente o fim da história mundial”, sem ser contestado por Schleiermacher, que explicou: “desde a antiguidade o cristianismo não era mais contestado ou invadido por outras ideias religiosas” (p. 158). A cruz segue como escândalo no qual o Deus revelado não aparece sob a luz, na qual o apocalipse é uma revelação oculta em seu oposto, cujas geografias despertam o não-familiar (Benjamin).

Revisitar as estações da cruz, criadas pelos franciscanos e perpetuadas na piedade atualiza a paixão de Jesus no tempo. O conteúdo das 14 estações é preenchido pelo sofrimento das pessoas das comunidades, assumindo o sofrimento de Cristo como modelo. Tillich associa três sentidos à vivência da ressurreição: o físico, o espiritual e o psicológico, na mesma realidade pós-cruz que Westhelle relaciona com os novos paradigmas de Thomas Kuhn, que tornaram “conhecimentos” firmemente rejeitados em reconhecidos. A rejeição da ressurreição pode revelar um limite da racionalidade, ao tempo em que ela se firma como “prática de trabalho, de luto e de amor, que vai além e atravessa os limites dos regimes de verdade de que somos devedores” (p. 171).

A reflexão de Westhelle sobre as contradições da cruz em Lutero revela a todo momento a dialética Hegeliana, com base cristã e traço confessional, que lhe possibilita explorar os diálogos em todas as frentes. Transdisciplinar, ele bebe saberes na filosofia, nas ciências, nas artes, no cotidiano e até na própria teologia, sem pudor de revelar suas fontes. A linguagem freqüentemente se torna transgressiva, aproximando dimensões formalmente distintas e explorando o recurso das figuras de linguagem. Tal é a variedade, expressa em linguajar limítrofe e de ambientes definidos, com capacidade para polarizar aspectos que aparentemente não têm relação, que leitores teológicos tradicionais precisam re-situar o raciocínio, dado o resultado inusitado que trazem. A quem está disposto a compreender a fé cristã em diálogo atual e contextual, recomendo a leitura.

Publicado em Atualidade Teológica (PUCRJ), 12(29): 270-5, maio-ago 2008. (ISSN 16763742)

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