sábado, 31 de janeiro de 2015

Ensaio sobre a cegueira paulista

Mauricio Moraes

E, de repente, um surto de cegueira acometeu São Paulo. Não se sabe se começou na avenida Higienópolis, na capital, ou se veio do interior. Há quem diga que o primeiro cego perdeu o senso de realidade em Ribeirão Preto. De repente deu de achar que estava na Califórnia. E a epidemia se espalhou silenciosamente pelo Estado, por todas as cidades e vilarejos.

Foto: Filme Ensaio sobre a Cegueira

Em 2014, nas eleições para o governo do Estado, a cegueira estava disseminada. Diferentemente do livro de José Saramago, onde uma mancha branca, um “mar de leite”, cegava um a um os habitantes de uma cidade fictícia, em São Paulo os cegos continuavam enxergando. Mas há tempos já se diz que o pior cego é aquele que não quer ver.

E eles não viram, ou apenas fizeram cara de paisagem, junto com editores cegos de jornais e revistas, do rádio e da TV. Tudo parecia normal durante a reeleição do “Geraldo”, alcunha de Geraldus Alckminus, da longeva dinastia tucana. “Não vai faltar água”, disse o governador pausadamente naquela campanha, ressaltando cada sílaba, na maior mentira deslavada da história recente do país.

E assim a maioria dos paulistas “acreditou” no que ele disse. Culparam São Pedro, o PT, e ignoraram solenemente os milhões que escorreram nos túneis do metrô e a violência que voltou a crescer. Se fizeram de Maria Antonieta no desmonte da educação e das universidades do Estado. Aplaudiram a PM esfolando manifestantes e matando jovens negros e pobres nas periferias. E sobretudo se fizeram de surdos quando alertados que a Cantareira estava baixando e que a água, logo logo, iria acabar.

No quarto mês de 2015, no início do quarto reinado alckmino, ano 20 da era tucana, muitos paulistas começaram a se dar conta da realidade. Talvez tenha sido o odor inebriante do CC no busão ou as louças amontoadas na pia. O cabelo ensebado por falta de banho pode ter ajudado. Cientistas suspeitam dos efeitos colaterais da água do volume morto.

Dizem que uma moradora dos Jardins acordou num surto psicótico depois que uma crosta de poeira havia se impregnado em seu carro de luxo. Nem decuplicar a oferta ao lava jato conseguiu driblar a realidade. “Esse atendimento não era gourmet?”, gritava, insana. Mas naquele dia já não havia mais água.

Não demorou a que o caos se instalasse. Todos correram aos supermercados para estocar o líquido precioso. As gôndolas ficaram rapidamente vazias. Em Itu, um caminhão de água foi sequestrado. Por toda a parte, havia registros de brigas, até por garrafinhas de 500 ml de água. E o preço foi às alturas. Em Pinheiros, uma rua cedeu depois que vários moradores cavaram poços clandestinos. A desordem se instalou. No Palácio dos Bandeirantes, longe de tudo e de todos, Alckminus tentava contornar a crise.

Desta vez, estava preocupado. O Maquiavel de Pindamonhangaba enxergava tudo muito bem e, com jeito de bom moço, já havia se tornado mestre em abafar CPIs na Assembleia Legislativa ou em mentir que a Corregedoria da PM funciona. Agora, estava sob grande pressão.

Ainda não havia sinal de nenhuma turba chegando ao longínquo Palácio dos Bandeirantes. O Choque da PM bloqueou o acesso ao Morumbi (com garantia de água à vontade, a fim de evitar um motim policial). O estoque de balas de borracha foi reforçado e um novo lote de gás lacrimogêneo fora usado contra manifestantes do Movimento Água Livre.

Contra o povo, Alckmin tinha a polícia. O que realmente o preocupava eram os 30 PIBs de São Paulo reunidos no Palácio (a quem foi oferecido champagne por razões de “restrição hídrica”, como explicou o cerimonial). Também apavoravam o governador as chantagens dos acionistas da Sabesp. Apesar do preço exorbitante, a falta d’água deixou a companhia deficitária, com as ações a preço de banana na Bolsa de Nova York, onde eram comercializadas desde a privatização parcial da empresa.

E assim os paulistas tentavam deixar a cidade, o Estado. Um grande congestionamento, que já durava uma semana, travou as rodovias. Na capital, moradores fugiam pelas ruas, carregando o que podiam, em uma cena dantesca. Uns deliravam e arrancavam as roupas, andando desorientados. A Força Nacional foi acionada. Já havia gente se jogando no Tietê.

Em meio à tragédia, os jornais traziam notícias otimistas. “Cacique Cobra Coral assegura que vai chover”, dizia a manchete de um deles, com declarações de Alckminus justificando a contração da “consultoria para deficiência hídrica”.

Analistas chegaram a prever um ataque da população ao Bandeirantes, mas pesquisas mostravam que grande parte dos paulistas ainda não tinha certeza sobre quem era o responsável pela crise da água, se Dilma ou Haddad.

Na dúvida, resolveram ir embora o mais rápido possível, com a fé abalada em São Pedro. Ainda mantinham a esperança de que, um dia, a cidade fosse inundar mais uma vez durante as chuvas de verão e que haveria água para todos (ou ao menos nos camarotes). Para muitos, a cegueira era irreversível.

http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/01/ensaio-sobre-cegueira-paulista/

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

A mídia envergonhada: do equívoco ao acerto

Antonio Carlos Ribeiro

A grande mídia brasileira – aquela filha ilegítima da ditadura, como a TV Globo (1965) e a revista Veja (1968) ou jornais e emissoras de rádio que 'perderam' a legitimidade ao se juntarem aos conglomerados de mídia surgidos do regime de exceção – com sua crônica dificuldade de existir na democracia, querendo controlar os poderes republicanos, mesmo após a mudança do regime, a crise de desnacionalização da era FHC e as quatro batalhas vitoriosas, já no novo  milênio.


Se as lutas e derrotas foram eleitorais, caracterizadas com crescente força, com denúncias e anúncios diários de hecatombes, a mídia se aliou aos partidos de oposição, por causa do descrédito político e governamental, conseguindo pressionar a Justiça durante a Ação Penal 470, com o objetivo de gerar escândalo e vencer as eleições. Apesar do esforço, a mídia-símbolo do golpismo que surrupiou duas décadas e meia do nosso desenvolvimento, conviveu com mais uma frustração.

Essas derrotas político-eleitorais se fizeram acompanhar de outras três: a perda de leitores, o desgaste da sincronicidade do discurso derrotista frente aos avanços econômicos. Essa crise não é histórica e sequencial como a tríade de Hegel (tese-antítese-síntese) mas segue obedecendo neste século à simultaneidade da lógica da mecânica quântica e de Pierce (primeiridade-segundidade-terceiridade), por isso imperceptível à midia que só opera com paradigmas já superados.

A grande mídia já percebeu que perde leitores, pela queda da 'qualidade' do que oferece. Já encontrou formas de presença nas redes sociais, mas sem perder a arrogância de ter a palavra final, mais bem informada e mais autêntica, e por desconhecer o poder de multiplicidade. Julga ainda dominar a linguagem e controlar o discurso, ainda esperando capitanear o processo informativo, se impor pela 'isenção' e 'veracidade', sem perceber a autonomia de busca e escolha dos leitores. Ao se recusar ser um caco na 'bricolage' tem perdido visibilidade no oceano, sem a segurança de antes.

Com o avanço dos anos, essa crise tem se intensificado, os golpismos midiáticos 'desconstruídos' em cada vez menos horas – não raro pelas redes sociais, com falhas e crimes da edição exposta na página do jornal ou revista – e as 'verdades' não são mais engolidas a seco. Assim o conglomerado fica obrigado a usar todo seu potencial para reafirmar falhas e rejeitar sua contestação, multiplicada às miríades pelas redes sociais em poucas horas. Mas com o vírus da dúvida já inoculado.

Neste caso o elemento propulsor da nova versão é a própria população, alcançando as mídias sociais  interligadas às redes e condenando à contra-informação os que só vêm TV.  Em grande parte os leitores já perceberam o conjunto de interesses que os conglomerados representam, fazendo sua mensagem ser efetiva apenas para os leitores habituais, em número cada vez menor, ou quando reproduzidos nos veículos afiliados ou assinantes. Sem se tornar verdade, apesar do seu peso.

Diretores, editores, comentaristas e repórteres que se acostumaram por décadas com leitores sem senso crítico relutam em lidar com as mudanças, sem perceber que sua influência segue caindo, mesmo num nível pequeno mas constante. Isso gera um esforço concentrado de competitividade, a transformação de uma palavra, um dado ou um elemento desconsiderado no discurso no retomada do tema na outra edição ou nos veículos da grande mídia, retomado dia após dia por semanas, com sequências de reforços – sempre de gente da área mas inexpressiva – sem gerar qualquer impacto ou provocar sequer resposta.


Recentemente, surgiu uma nova modalidade do velho recurso golpista: premiar Wiliam Bonner com o troféu Mário Lago. Como editor do Jornal Nacional - o veículo mais conservador e com a maior queda de audiência - é conhecido por ter comparado seu público com Homer Simpson. Filhos do ator, compositor e poeta comunista mais conhecido reagiram inconformados, denunciando que o prêmio era destinado a atores, compositores e cantores. Pior, escolheram para a entrega a premiada atriz Fernanda Torres. A decisão 'política' provocou reações nas redes sociais, a começar da família, causando desgastes ao premiado, a quem entregou e à emissora, que com o gesto finalmente assumiu não fazer distinção entre entretenimento e jornalismo. Sempre de baixa qualidade.

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