segunda-feira, 23 de março de 2015

O golpismo recorrer a métodos da primeira metade do século XX, imagine o desespero

Dia-logar: transcender a palavra: Aécio prepara ataque à democracia brasileira: Paulo Moreira Leite é um jornalista da área de política. Culto, bem informado e com experiência de exercício da profissão, que domina como ...

Aécio prepara ataque à democracia brasileira

Paulo Moreira Leite é um jornalista da área de política. Culto, bem informado e com experiência de exercício da profissão, que domina como poucos o histórico da vida política brasileira último século. Isso lhe permite uma narrativa historicamente bem sustentada, uma análise da certeira da atual judicialização da política - sem nenhuma novidade em relação às do último século de história -, e uma denúncia bem formulada da falta de criatividade das elites diante de expulsão da vida pública.

Proposta de cassar registro do PT repete absurdos autoritários do pós-Guerra, quando PCB foi colocado na ilegalidade e os fascistas podiam até disputar presidência da República

Ao anunciar projeto para cassar o registro de partidos que recebem propina de empresas privadas, Aécio Neves não consegue esconder qual é a etapa final da Operação Lava Jato — a cassação do registro do Partido dos Trabalhadores. Não que o pagamento de propinas ao PT já esteja provado ou seja fácil de demonstrar pelas regras da Justiça, com respeito aos rituais jurídicos e direitos de defesa. Simplesmente, pode ser a cena final do espetáculo Lava Jato, que o país assiste sem que as instituições responsáveis pela defesa das garantias individuais se manifestem, como se poderia imaginar.



Lembrando que é pura hipocrisia sustentar que os pecados de que o PT tem sido acusado são uma exclusividade do partido, a iniciativa representa o nível mais baixo da uma disputa política que nos últimos dias se transformou num circo injusto e perigoso para a democracia. Demonstra, ainda, a fragilidade dos compromissos de Aécio Neves com os valores da democracia e da liberdade de expressão no país.

Trata-se de uma aberração tão grande que vale à pena aguardar, desde já, pela reação de antigos comunistas que sofreram, na própria pele, a repressão ao PCB, colocado na ilegalidade pelo TSE em 1947, em ambiente de grande intolerância política e de criminalização das ideias de esquerda, conseguindo voltar a luz do dia apenas em 1985. A indignação será prova de caráter. A condescendência será demonstração de que também praticam o vale-tudo.

A cassação do registro de um partido costuma modificar o sistema político de um país, altera a vida das pessoas e enfraquece uma democracia. Em 1947, o futuro deputado e governador de São Paulo Alberto Goldman tinha dez anos de idade. (Vinte e três anos depois, a máquina clandestina do PCB, escondida no MDB, lhe daria o primeiro mandato como parlamentar). Aloysio Nunes Ferreira, senador por São Paulo, era pouco mais do que um bebê de dois anos. Três décadas depois, ao deixar a guerrilha contra a ditadura, Aloysio abrigava-se no PCB em seu exílio em Paris. Fazia parte do grupo de jornalistas do partido que, sob direção de Armênio Guedes — 29 anos quando o registro do PCB foi cassado — escrevia o jornal Voz Operária. Luiz Carlos Prestes, o mais importante líder comunista do país, tinha 49 anos quando o PCB perdeu o registro. Deixou o partido em 1984, um ano antes dele ser legalizado.

É sempre bom recordar que, com as regras atuais de financiamento de campanha, nenhum partido político brasileiro é capaz de competir de verdade pelo poder de Estado, num país com 100 milhões de eleitores, sem contar com recursos de empresas privadas para pagar as despesas de uma eleição. É a regra do jogo.

Em nenhuma parte do mundo as contribuições em dinheiro grosso envolvem casos de filantropia eleitoral. São um investimento, um toma lá dá cá aberto, descarado, legal. Funciona, aqui, a regra da conveniência: dinheiro para minha campanha é contribuição política; na dos adversários, é propina.

Por exemplo: nos EUA, as verbas privadas de campanha servem para sustentar a industria de armas, que permite às famílias colecionar submetralhadoras em casa. Também garantem a preservação do sistema privado de saúde. Os lobistas privados ainda são capazes de financiar contra-campanhas para impedir a eleição de um adversário — apenas para ficarem livre de um político do indesejado no Capitólio.

No Brasil, vive-se um sistema idêntico, ressalvando as diferenças históricas entre os dois países. A presença do caixa 2 no financiamento das campanhas brasileiras não é uma invenção do sistema eleitoral, mas um traço típico de um país onde uma Receita frágil é o berço histórico de uma sonegação forte, criando uma zona de sombra que se vê em toda parte, inclusive na política. Por essa razão, os escândalos se assemelham e se misturam.

O chamado mensalão do PT foi vizinho do mensalão PSDB-MG. As denúncias sobre a Petrobras que envolvem o Partido Popular, o PMDB e o Partido dos Trabalhadores são simultâneas às acusações envolvendo o próprio Aécio Neves no desvio de Furnas — e surgiram depois das acusações de Paulo Francis envolvendo contas de diretores da mesma Petrobras na Suíça. Poucas vezes se teve notícia de um esquema tão antigo, permanente e milionário como a dos metrôs tucanos de São Paulo. E é claro que se pode encontrar algo semelhante em outras administrações pelo país.

Os fatos não mudam — apenas o que se faz com eles. Foi assim na AP 470, que mandou petistas e seus aliados para a cadeia, enquanto o mensalão PSDB-MG foi cozinhado em banho maria tão lento que até agora não se tem notícia de nenhuma condenação definitiva, embora o caso seja até mais antigo.

É assim no metrô paulista, conhecido e identificado na Suíça — mas que não incomoda ninguém, não produz cenas de indignação, nem gera uma, umazinha só, prisão preventiva para que os acusados façam delações premiadas. (Sou contra as prisões preventivas abusivas, em qualquer caso. Mas é sintomático que, essa forma brutal de investigação, que diversos juristas comparam à tortura, tenha sido um instrumento exclusivo na Lava Jato, numa versão grotesca de tratamento diferenciado, e jamais tenha sido empregada em outros casos que poderiam condenar políticos de outros governos).

O debate real envolve é modificar a legislação em vigor, para impedir o acesso privilegiado de empresas privadas ao poder político. É uma situação que distorce a célebre relação um homem = 1 voto.

Mas isso não interessa nem ao PSDB nem a seus aliados e provoca pânico no mundo conservador.

Isso porque o recursos privados são apenas condenáveis, quando chegam aos adversários — fazem parte de seus tradicionais instrumentos de dominação política.

Tornaram-se ainda mais inaceitáveis quando o crescimento do Partido dos Trabalhadores junto a grandes camadas do eleitorado lhe deu acesso ao caixa das empresas privadas que, antes disso, eram alimento exclusivo dos partidos tradicionais. Ocorreu um desses milagres da democracia: quando todos têm acesso ao dinheiro, este deixa de fazer grande diferença nas campanhas — o que é inaceitável para quem, desde a proclamação da República, tinha monopólio exclusivo.

Daí a necessidade do escândalo, a aliança com o Ministério Público e os meios de comunicação.

Essa comunhão de interesses é essencial para dar veracidade a uma investigação seletiva, que gera uma cobertura seletiva que terá, por fim, um tratamento jurídico seletivo.

Permite sustentar uma ficção: a visão de que, para uns, temos contribuições legais e cívicas. Em outro, propinas corruptoras e recursos interesseiros. A investigação dirigida implica em colher testemunhos e depoimentos de um lado só, construindo uma história que todos sabem aonde vai terminar. Dá ares de legitimidade a uma situação ilegítima, onde se sabe, desde sempre, que a punição de uns será acompanhada pela impunidade de outros.

Na prática, a iniciativa de Aécio Neves envergonharia políticos da geração de seu avô, que lutaram pela democratização do Brasil.

Vários relatos da época informam que Tancredo Neves fundou a Nova República com auxílio de um imenso caixa de campanha reunido por grandes empresários e banqueiros. Nunca se achou estivesse cometendo algum tipo de crime. Era apenas a forma possível de fazer política nas circunstâncias de um país que, nesse aspecto, pouco se modificaram ao longo dos anos. De uma forma ou de outra, esse esquema sempre interessou as forças que disputavam o poder e o PT foi o último a entrar para o clube.

O que também permaneceu, de lá para cá, foi a vocação autoritária do conservadorismo brasileiro, pronta a se manifestar em caso de necessidade, usando de qualquer pretexto.

Em maio de 1947, o TSE aprovou a cassação do registro do Partido Comunista do Brasil, que tinha uma respeitável bancada de 14 deputados federais, na época.

A medida contrariava os quatro casos que previam o fechamento de partidos políticos no país, o que levou o juiz-relator Sá Filho a recusar o pedido de cancelamento com um argumento político: “no horizonte da longa estrada percorrida se divisa nos dias recentes da história dos povos que o desaparecimento do partido comunista dos quadros legais coincide com o eclipse da democracia.”

Embora outros ministros tenham apoiado o relator, o PCB foi colocado na ilegalidade pelo TSE. Prevaleceu o voto do ministro Cândido Mesquita da Cunha Lobo. Ainda que o debate tivesse sido iniciado pela denúncia das ligações dos comunistas com a antiga União Soviética, que nunca foram demonstradas nos quatro casos previstos em lei, a leitura do voto vencedor mostra que o importante, no caso, era a questão política, num ambiente politicamente envenenado, no qual não faltavam pronunciamentos de militares, tanto da geração do Estado Novo, como aqueles que anos depois estariam no golpe de 1964, como um certo coronel Castelo Branco. “Vitoriosa na luta contra o totalitarismo, não pode a Democracia ficar indefesa diante de outros perigos”, disse Cunha Lobo, no voto que deixou o Partido Comunista de 1947 até o início da Nova República. Pouco depois, os comunistas quiseram criar uma nova legenda, o Partido Popular Progressista. O recurso foi rejeitado.

Dois anos depois, o mesmo TSE julgou um pedido de cassação do registro do Partido de Representação Popular. Era o novo nome dos integralistas, a versão brasileira do fascismo que, em seus tempos mais desinibidos, abrigava até uma corrente nazista, inspirada em Adolf Hitler.

Como se pode imaginar, os fascistas ganharam e foram autorizados a funcionar legalmente. Vez por outra, até lançavam seu líder Plínio Salgado como a presidente da República.

O ministro Djalma da Cunha Mello, autor do voto vencedor, não perdeu a oportunidade de bater no PCB em sua argumentação, embora o caso dos comunistas não estivesse mais em julgamento. Definiu o PCB como ”uma ponta de lança da ação sabotadora do Kremlin, do imperialismo stalinista, com todo seu cortejo de intolerância, violência e desumanização.”

Referindo-se aos integralistas, o ministro até admite um histórico de “intolerância, disciplina exorbitante, acentuado pendor para o regime discricionário.” Mas o ministro ressalvou: “resta acentuar que o Partido de Representação popular, por seus estatutos, programa de ação, vem se mostrando até agora digno do ‘toque de reunir da sensatez com que a nação convocou todas as agremiações para que viessem cuidar dos destinos do país; vem revelando conduta escorreita em face do exibido pela Constituição de 1946 e mais leis em vigor.”

E foi assim, perseguindo comunistas e protegendo fascistas, que se fez nossa democracia seletiva. O plano é voltar a ela?

Paulo Moreira Leite

Transcrito de http://paulomoreiraleite.com/2015/03/19/aecio-ameaca-democracia/

sábado, 7 de março de 2015

Leonardo Boff: O que se esconde atrás do ódio ao PT?

Boff é um intelectual profundo e completo. Parte da leitura teológica da realidade, mas a aprofunda no diálogo com saberes científicos, com os clamores dos pobres latino-americanos, dos intelectuais de todos os cantos do planeta e com setores organizados e articulados da sociedade. Quando deixou o sacerdócio, alguns disseram que ele perdeu a teologia como objeto de pesquisa. Mas a produção intelectual, a influência sobre a academia e o aprofundamento do diálogo com a sociedade só avançaram, tornando sua intervenção, além de bem-vinda, assumida. Confiram!

Há um fato espantoso, mas analiticamente explicável: o aumento do ódio e da raiva contra o PT. Esse fato vem revelar o outro lado da “cordialidade” do brasileiro, proposta por Sérgio Buarque de Holanda: do mesmo coração que nasce a acolhida calorosa, vem também a rejeição mais violenta. Ambas são “cordiais”: as duas caras passionais do brasileiro.

Por Leonardo Boff*, na Carta Maior

Esse ódio é induzido pela mídia conservadora e por aqueles que na eleição não respeitaram rito democrático: ou se ganha ou se perde. Quem perde reconhece elegantemente a derrota e quem ganha mostra magnanimidade face ao derrotado. Mas não foi esse comportamento civilizado que triunfou. Ao contrário: os derrotados procuram por todos os modos deslegitimar a vitória e garantir uma reviravolta política que atenda a seu projeto, rejeitado pela maioria dos eleitores.



Para entender, nada melhor que visitar o notório historiador José Honório Rodrigues, que em seu clássico Conciliação e Reforma no Brasil I (1965) diz com palavras que parecem atuais: “Os liberais no império, derrotados nas urnas e afastados do poder, foram se tornando além de indignados, intolerantes; construíram uma concepção conspiratória da história que considerava indispensável a intervenção do ódio, da intriga, da impiedade, do ressentimento, da intolerância, da intransigência, da indignação para o sucesso inesperado e imprevisto de suas forças minoritárias” (p. 11).

Esses grupos prolongam as velhas elites que da Colônia até hoje nunca mudaram seu ethos. Nas palavras do referido autor: “a maioria foi sempre alienada, antinacional e não contemporânea; nunca se reconciliou com o povo; negou seus direitos, arrasou suas vidas e logo que o viu crescer lhe negou, pouco a pouco, a aprovação, conspirou para colocá-lo de novo na periferia, no lugar que continua achando que lhe pertence”(p.14 e 15). Hoje as elites econômicas abominam o povo. Só o aceitam fantasiado no carnaval.

Lamentavelmente, não lhes passa pela cabeça que “as maiores construções são fruto popular: a mestiçagem racial, que criava um tipo adaptado ao país; a mestiçável cultural que criava uma síntese nova; a tolerância racial que evitou o descaminho dos caminhos; a tolerância religiosa que impossibilitou ou dificultou as perseguições da Inquisição; a expansão territorial, obra de mamelucos, pois o próprio Domingos Jorge Velho, devassador e incorporador do Piauí, não falava português; a integração psico-social pelo desrespeito aos preconceitos e pela criação do sentimento de solidariedade nacional; a integridade territorial; a unidade de língua e finalmente a opulência e a riqueza do Brasil que são fruto do trabalho do povo. E o que fez a liderança colonial (e posterior)? Não deu ao povo sequer os benefícios da saúde e da educação”(p. 31-32).

A que vêm estas citações? Elas reforçam um fato histórico inegável: com o PT, esses que eram considerados carvão no processo produtivo (Darcy Ribeiro), o rebutalho social, conseguiram, numa penosa trajetória, se organizar como poder social que se transformou em poder político no PT e conquistar o Estado com seus aparelhos. Apearam do poder as classes dominantes; não ocorreu simplesmente uma alternância de poder mas uma troca de classe social, base para um outro tipo de política. Tal saga equivale a uma autêntica revolução social.

Isso é intolerável pelas classes poderosas que se acostumaram a fazer do Estado o seu lugar natural e de se apropiar privadamente dos bens públicos pelo famoso patrimonialismo, denunciado por Raymundo Faoro.

Por todos os modos e artimanhas querem ainda hoje voltar a ocupar esse lugar que julgam de direito seu. Seguramente, começam a dar-se conta de que, talvez, nunca mais terão condições históricas de refazer seu projeto de dominação/conciliação. Outro tipo de história política dará, finalmente, um destino diferente ao Brasil.

Para eles, o caminho das urnas se tornou inseguro pelo nível crítico alcançado por amplos estratos do povo que rejeitou seu projeto político de alinhamento neoliberal ao processo de globalização, como sócios dependentes e agregados. O caminho militar será hoje impossível dado o quadro mundial mudado. Cogitam com a esdrúxula possibilidade da judicialização da política, contando com aliados na Corte Suprema que nutrem semelhante ódio ao PT e sentem o mesmo desdém pelo povo.

Através deste expediente, poderiam lograr um impeachment da primeira mandatária da nação. É um caminho conflituoso pois a articulação nacional dos movimentos sociais tornaria arriscado este intento e talvez até inviabilizável.

O ódio contra o PT é menos contra PT do que contra o povo pobre que por causa do PT e de suas políticas sociais de inclusão, foi tirado do inferno da pobreza e da fome e está ocupando os lugares antes reservados às elites abastadas. Estas pensam em apenas fazer caridade, doar coisas, mas nunca fazer justiça social.

Antecipo-me aos críticos e aos moralistas: mas o PT não se corrompeu? Veja o mensalão? Veja a Petrobrás? Não defendo corruptos. Reconheço, lamento e rejeito os malfeitos cometidos por um punhado de dirigentes. Traíram mais de um milhão de filiados e principalmente botaram a perder os ideais de ética e de transparência. Mas nas bases e nos municípios – posso testemunhá-lo – vive-se um outro modo de fazer política, com participação popular, mostrando que um sonho tão generoso não se mata assim tão facilmente: o de um Brasil menos malvado. As classes dirigentes, por 500 anos, no dizer rude de Capistrano de Abreu, “castraram e recastraram, caparam e recaparam” o povo brasileiro. Há maior corrupção histórica do que esta? Voltaremos ao tema.

*Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor

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