domingo, 29 de abril de 2012

Propostas de Emendas rasgam o texto legal, denuncia Krenak

Antonio Carlos Ribeiro

Rio de Janeiro, segunda-feira, 30 de abril de 2012 (ALC) - Ailton Krenak condenou as Propostas de Emenda à Constituição (PEC), pois elas “rasgam a Constituição a cada momento. Parece que há deputados e senadores que – diferentes de um Suplicy (senador Eduardo Suplicy) – não sabem a que vieram, não têm razões para lutar e não respeitam o nosso povo. Deviam ir embora, trocar de atividade e organizar a quadrilha fora do Congresso”, disparou o índio que usou pintura de guerra para denunciar grilagem de terras no Congresso, nos anos 80.

Edson Kaiapó, doutorando em educação pela Universidade de São Paulo (USP), lembrou uma cena em que via uma “creche de luxo para cachorros e do outro lado da rua os policiais chutando crianças que dormiam na calçada, gritando: ‘levanta, vocês vão atrapalhar a passagem das pessoas’”. Por isso decidiu pensar na aldeia onde se vive com dignidade e respeito, e da literatura como forma de mostrar nova maneira de lidar com os outros.


Ailton e Edson participaram do I Encontro do Núcleo de Escritores e Artistas Indígenas (Nearin) na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), na quinta-feira,m 26. O encontro é uma iniciativa do Núcleo de Educação de Adultos (NEAd) e da Cátedra UNESCO de Leitura. Três mesas de debate reuniram autores de livros, artistas e intelectuais.

A primeira mesa tratou da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio + 20, a partir da perspectiva indígena, fazendo um balanço da visão ambiental brasileira, com a participação de Ailton Krenak, Manoel Moura e Álvaro Tukano, mediados pelo professor Renato Costa, do NEAd.

A Literatura Indígena e Meio Ambiente, tema da segunda mesa, trouxe uma reflexão de Eliane Potiguara, Edson Kaiapó e Ely Macuxi, mediados pelo literato Ricardo Oiticica, da Cátedra, sobre o papel da literatura produzida por indígena na formação da consciência ambiental brasileira.

A terceira e última mesa tratou do tema da literatura infantil e juvenil, ressaltando a presença do curumim na literatura e do debate sobre educação socioambiental através da literatura. Participaram a antropóloga Melissa Carvalho Gomes Monteiro e o teólogo Antonio Carlos Ribeiro, da Cátedra, com a mediação do artista Cristino Wapichana. As colocações dos painelistas provocaram perguntas e reações.

As diversas respostas enfatizaram o estado da situação das populações indígenas, assentadas e ribeirinhas, diante de governos que se corrompem e da reação dos povos indígenas, especialmente através de artistas e intelectuais que potencializam a participação indígena e seu papel na sociedade, como seu ponto mais forte.

sábado, 28 de abril de 2012

O papel da literatura infantojuvenil indígena na educação socioambiental


Antonio Carlos Ribeiro*

Para meus curumins, Pedro e Vitória!

O tetragrama sagrado יה-וה (HVHY, em caracteres latinos) são as quatro consoantes que designam o nome de Deus (Yahweh, em hebraico), por isso impronunciável. No ÉÀÉÌ, realizado hoje aqui na PUC-Rio, há também quatro letras, mas vogais, que o tornam pronunciável. Para pensar no futuro das povos indígenas no Brasil é preciso pensar nas crianças indígenas. Para pensar nelas, é preciso pensar no seu núcleo familiar e na reflexão. E necessário lidar com esse saber e fazê-lo vivo entre as populações, sobretudo os mais jovens, mais precisamente as crianças indígenas. E nesse enquadramento, surge o papel da literatura infantil e juvenil, com funções várias, que dá os elementos para pensar o mundo, inclusive a educação socioambiental.


Feitos esses recortes, descobre-se a tarefa da literatura indígena infantil e juvenil, e seus caminhos possíveis. Ela se origina naqueles saberes não ditos, não escritos, codificados em linguagem informal, muitas vezes apenas ambientais, sensoriais – com o uso apurado dos cinco sentidos e o aporte de um sexto que os interliga, recuperando a condição humana que a eles empresta sentido existencial.

O que é significativo na vida de todos os seres humanos é guardado pelo mistério (da palavra grega mysterium que chega ao latim como sacramentum) e é comumente traduzida como o sinal visível de uma ausência. Por isso, em nossa cultura, a cadeira do avô é mantida na sala, o retrato da avó continua no quarto e o pátio é preservado com as árvores, os brinquedos e os riscos no chão para brincar de amarelinha. Isso significa que essas coisas são mais que coisas. Elas guardam fios invisíveis de memória e têm o poder de evocar sentimentos, imagens, sons, cheiros, cores e sabores que trazem de volta a capacidade mágica de ser revisitados por aqueles que fazem parte do momento fundante de nossa vida.

Nas tradições indígenas essa intermediação é feita pela floresta, os rios, os animais, o plantio e conjunto do ecossistema que integra o habitat desses povos. Assim, preservar esse ecossistema, para esses povos não é apenas a sobrevivência biológica e a criação das condições para a preservação da vida humana na terra. É recuperar a memória, que nos traz de volta as raízes mais profundas, fundacionais do mundo – a partir do qual lemos tudo à nossa volta – estruturantes do olhar, que ao se dirigir à natureza, nos faz encontrar-nos com nós mesmos, deparar-nos com aquela parte da personalidade humana que não está acessível pela razão.

A razão, que no mundo ocidental, especialmente nas culturas mais ricas, parece fundamental, é representativa dessa lógica do domínio das situações, do controle dos outros, do poder sobre as coisas que nos faz pretensiosos, arrogantes e quase convictos. Julgamos poder colocar todos os conceitos sob seu controle, desde suas descrições mais básicas. O substantivo surge da pretensão de nomear a substantia, a essência, e muitos ainda creem que a palavra mantém aquele significado, a partir do qual aquilo tem sentido para as pessoas.

Movimento inverso é o vivido por esses povos, dentre eles, especialmente os poetas. Da palavra de Ailton Krenak sobre poesia indígena na Feira do Livro Indígena de Mato Grosso (FLIMT), em outubro de 2009, aprendi a diferença da lógica do mundo ocidental para a dos povos indígenas. Segundo ele, as pessoas se deixam perpassar por todo esse conjunto à sua volta e o que fazem emprestar sua capacidade, emoção e talento a essas forças que o perpassam, tomam conta, contribuem para adentrar o mistério. Aqui vale lembra que o mistério não esconde, mas contraditoriamente, revela.

Possuídas pelo mistério as situações se descortinam, os horizontes se abrem e a conexão das imagens permite compreender, aprender junto, distinguir os entretons. Lembra a figura da tradição cristã – perdão por todo o mau significado que cristão, branco e ocidental evocam! – para falar de perceber o que está presente, mas não pode ser visto, como o véu da noiva no momento do sim no casamento (apocalipse = desvelar). O mistério pede respeito, ao conteúdo e ao processo, e isso é parte constitutiva do se aproximar. O cuidado é exigido porque aquilo de que aproximo é maior, é fontal, é constitutivo. Por isso, tirar as sandálias dos pés, se curvar, reverenciar.

É com essa atitude, que a gente pode se aproximar da cultura dos povos indígenas. Lembre que estás pisando solo sagrado, da história das vítimas, da memória dos injustamente vencidos, dos que tiveram seu sagrado pisado. Esse é o primeiro passo, reverenciar. O segundo, é deixar-se possuir pelo mistério.  Se achegar à ancestralidade, sem esquecer que ela é prenhe da memória viva dos antepassados, é nutrida da sua história de luta e afirmação, é marcada por dor e sofrimento, e por isso é a semente que mantém esses povos vivos e lutando.

E a literatura infantil e juvenil é a forma mais bela, quiçá prazerosa, de adentrar esse templo, a natureza, na qual desde tempos imemoriais, esses povos vivem e celebram. Quando a gente vagueia pela obra de Daniel Munduruku, entre diversos outros autores indígenas, se depara com esse horizonte.

Em Você lembra, pai, ele trata das questões da relação pai-filho. Lembra o cotidiano, o ambiente do crescimento, os ritos de passagem, sempre marcados pela memória do pai. Poderosas memórias evocativas – ligadas a momentos significativos – são esse referencial. Os registros espirituais e afetivos são mais fortes que os racionais e intelectuais. Mexem com a vida toda e não apenas com a razão. A inteligência emocional tem mostrado hoje que quem ama mais muitas vezes chega antes às respostas.

A Sabedoria das águas, do mesmo autor e na mesma temática, trata da mística do cotidiano, aponta para a espiritualidade, descreve dilemas existenciais de um índio jovem e sua mulher. Mostra essa liturgia necessária para viver os mistérios da vida e contemplar o que só pode ser visto pelos iniciados naquele rito. Mais que isso, se baseia na sabedoria ancestral, herdada de tempos imemoriais, construída pela mística dos xamãs e testemunhada pela para-oikia (paróquia), a comunidade peregrina. O mistério em vasos de barro é a comunidade humana.

Essa mística é a que guarda os saberes da vida e da sobrevivência do cotidiano: da obtenção das condições de vida, das sementes; dos tempos de plantio e colheita, frio e calor, sol intenso e chuva abundante; dos alimentos, orações, remédios e cuidados. Os papéis de cada membro, o aprendizado dos pequenos e dos jovens, a força da experiência dos adultos e a sabedoria dos mais velhos. Em cada uma destas etapas há os sinais, os cuidados, os riscos, as precauções e as maldições.


A mística da manutenção da vida, dos curumins, dos guerreiros, das mulheres e dos anciãos da tribo, vai dos cuidados básicos à completa liberdade para cada espaço: a tenda, o pátio, a aldeia e os espaços das aldeias, lembrando os protegidos da profanação como o lugar de culto e da sepultura dos mortos, com riscos que variam do perigo da natureza aos letais, que passam pelas forças que surgem das disputas. A mística da defesa de espaços de luta e sobrevivência passa pela caça e a pesca, com a obtenção de condições de caçar, transportar, preparar os alimentos. No interior das florestas.

A literatura infantil e juvenil, que deve ser mais prestigiada, por ser uma extensão da memória para as novas gerações, nos convida a “entrar numa compreensão mais circular, tradicional, ancestral. Esse pensar nos remete à ideia de que as coisas estão integradas entre si e que elas – as coisas – trazem um saber que lhe é peculiar e que se manifesta a quem está atento aos sinais do universo. Isso tem sido mantido pelos povos indígenas ao longo dos milhares de anos que habitam este planeta”, observa Munduruku (Você lembra, pai, p. 9).

Muito desse saber, a gente só recebe pela experiência. Quando tive contato com Cristino Wapichana, na FLIMT 2009, que me contou como uma tribo lida com o problema da violência especialmente em um ou outro jovem. Quando o grupo percebe isso, não reage a este comportamento, ao mesmo tempo que cria as condições para que o jovem índio perceba isso. Caso isso não resolva, o pagé entra em cena. Ele pega uma formiga grande e põe sobre o corpo do rapaz, que o pica imediatamente e é logo retirada. A dor é forte e o rapaz começa gritar. E então, o mesmo pagé administra o antídoto. Assim, ele explicou como existem mecanismos naturais, usados pelo pagé para conter o ímpeto dos jovens. É uma forma de lidar com a pulsão e a violência. Logo percebemos a diferença entre as sociedades tribais e a nossa sociedade. Esse método diminui sensivelmente os casos de conflito. Mas é bom lembrar que as sociedades indígenas não têm polícia, nem ministério público e nem judiciário. 

A literatura infantil e juvenil guarda todos esses saberes. Por isso deve ser estimulada, preservada, fomentada e subsidiada. E o papel de uma instituição como a Cátedra UNESCO de Leitura (PUC-Rio) é apoiar essa iniciativa.

Referências bibliográficas:
MUNDURUKU, Daniel. Coisas de Índio. São Paulo: Callis, 2000.
________. Coisas de Índio; versão infantil. São Paulo: Callis, 2003. 
________. Sabedoria das águas. Ilustração de Fernando Vilela. São Paulo: Global, 2004.
________. O segredo da chuva. Ilustração de Marilda Castanha. São Paulo: Ática, 2003.
________. Você lembra, pai? Ilustração de Rogério Borges. São Paulo: Global, 2003.

* Pesquisador na Cátedra UNESCO de Leitura (PUC-Rio)


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http://www.catedra.puc-rio.br/blog/?/121/literatura+indigena+.htm

domingo, 22 de abril de 2012

Nós somos só os Filhos!


Antonio Carlos Ribeiro


Para meus curumins, Pedro e Vitória!

Antologia Indígena é uma obra coletiva (MUNDURUKU, Daniel; WAPICHANA, Cristino. Antologia Indígena. Cuiabá: Flimt/SEC, Inbrapi, 2009), trazida a lume na Feira do Livro Indígena de Mato Grosso (Flimt), realizada de 6 a 10 de outubro em Cuiabá (MT), publicada pela Secretaria Estadual de Cultura (SEC) e o Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (Inbrapi), com a participação de populações de 25 etnias, entidades indígenas, ONGs, com editores e mais de 100 autores de diversas regiões do país.

A introdução é feita a partir de uma imagem e três palavras. A figura é um caracol centrífugo, elaborado por Cristino Wapichana, significando o movimento indígena pelo mundo. A primeira, do Secretário Estadual de Cultura, Paulo Pitaluga, retoma a ênfase do bispo espanhol Bartolomé de Las Casas em debate teológico no velho continente: o índio tem alma! Mas lamenta que invasores brancos “acabaram com nações, etnias, tribos e aldeias; liquidaram com sua cultura material e imaterial, seus saberes ancestrais, sua religiosidade e crenças, seus mitos e lendas, sua língua mater; arrasaram seus espaços de vida; acabaram com seus meios de sobrevivência; escravizaram-nos, mantendo-os século sob correntes e processos avassaladores de aculturação; mataram os pajés, os caciques, os guerreiros, as mulheres e as crianças” (p. 7).

A segunda, de Daniel Munduruku, coordenador do Núcleo de Escritores e Artistas Indígenas do Inbrapi (Nearin), convida a “entrar numa compreensão mais circular, tradicional, ancestral. Esse pensar nos remete à idéia de que as coisas estão integradas entre si e que elas – as coisas – trazem um saber que lhe é peculiar e que se manifesta a quem está atento aos sinais do universo. Isso tem sido mantido pelos povos indígenas ao longo dos milhares de anos que habitam este planeta” (p. 9), observa a respeito destas reflexões em versos, prosas, narrativas, mitos.

A terceira parte da introdução é um poema cantado pelo compositor Márcio Bororo, dando as boas-vindas a Cuiabá, através  do “bradar de muitos guerreiros de uma terra simples e gentil, o chamado dos povos indígenas do coração do Brasil” (p. 11). O livro é dividido em duas partes. Poesias, a primeira, e Reflexões, a segunda, reunindo autores e autoras de diferentes povos indígenas, atuando em diversas frentes e vivendo e todas as regiões do país, dos quais retire fragmentos, como aperitivos.




Aurilene Tabajara, de Poranga (CE), inaugura seção Poesias com Somos povos livres, lembrando a bravura, os massacres, a discriminação, mas preservando as raízes na história, no saber e na cultura:

Nossa cultura está viva
em geração e memória,
somas de experiências
dos ancestrais em trajetória (p. 15)

Carlos Tiago, do Povo Saterê-Mawé (AM), publica Legado de Índio, Velho índio, Medo da noite e Sombras e raízes, que declamou no Caxiri Literário:

Sombras e raízes
pelo medo dos deserto.
Esqueletos de florestas,
veias secas dos rios.
Porque gosto da chuva
sem o cheiro dos ácidos cuspidos
pela boca da ganância humana.
Porque quero sempre ver o arco-íris,
desenhado por frutas, flores e nuvens.
Porque é necessária a luta pela preservação da vida
que emerge do âmago de minhas tradições
...
Sombras e raízes,
Porque meu sonho é de uma
Amazônia sempre verde.
Verde como os sonhos índios.
Olhos de florestas e da cunhã
sentada na beira do rio
namorando o carinho do vento,
desejando o abraço da chuva,
navegando nas curvas do encanto das águas (p. 20-21).

Cristino Wapichana, do Povo Wapichana (RR), canta o Sonho e a Paz:

Quero a paz todos os dias.
Vou percorrer o mundo
e levar toda a alegria que puder.
Hoje, já muita violência;
tanta destruição, tantas guerras, muitas dores,
vidas cheias de terrores!
Já não sentem a luz do sol...
Já não ligam mais pras flores...
Não conseguem ouvir, do canto, o som da paz... (p. 22)

Eliane Potiguara, do Povo Potiguara (RN), registra a Identidade Indígena, um texto de 1975 marcado pela indignação, a mística e a expectativa de reconhecimento:

Sou uma agulha que ferve no meio do palheiro.
Carrego o peso da família espoliada, desacreditada,
Humilhada, sem forma, sem brilho, sem fama.
Mas não eu só. Não somos dez, cem ou mil
que brilharemos no palco da História.
...
E nós, indígenas de todo o planeta,
só sentiremos a fome natural,
e o sumo de nossa ancestralidade
nos alimentará para sempre (p. 23, 25)

Graça Graúna, do Povo Potiguara (PB), traz uma Canção peregrina:

As pedras do meu colar
são história e memória
do fluxo do espírito
de montanhas e riachos
de lagos e cordilheiras
de irmãos e irmãs
nos desertos da cidade
ou no seio das florestas (p. 27)

Luciana Kaingang, do Povo Kaingang (RS), dedica Onde você se esconde? à mulher e seu papel no cotidiano:

Onde você se esconde, mulher Kaingang?
Tão bela entre tantos gentios
que nossa própria nação não enxerga;
Olhos tapados pela dor das derrotas!
...
Nós, considerados povos sofridos e embrutecidos e feios...
Mostra a eles, minha bela,
o tamanho de nossa educação,
o tamanho da nossa beleza, concentrada num só rosto:
no teu rosto queimado de sol! (p. 29)

Manoel Fernandes Moura, do Povo Tukano (AM), traz o Lamento Nacional de um Guerreiro, uma releitura do Hino Nacional Brasileiro, entrecortando-o com os gritos da tortura, do abandono, da doença e da morte:
Ouviram do Ipiranga, às margens plácidas,
atrás das margens, gritos reprimidos por tortura,
lágrimas de um povo heróico – o brado que não retumba.
O sol da liberdade, em raios contidos,
tem vergonha de brilhar na nossa Pátria
...
Se a mentira desta igualdade conseguimos demonstrar com braços mortos,
em teu seio, ó Liberdade, desafia a mortandade planejada.
Ó Pátria amada, atraiçoada, queremos te salvar! (p. 31)

Rony Wasiry Guará, de Boa Vista dos Ramos (AM), apresenta Revelação e Um grito na floresta:

Eu fugi.
Fugi do medo
da tua mensagem,
do teu amparo.
Fugi do teu grito,
do teu silêncio,
com medo,
com medo que prendessem, prendendo minha vontade
de ouvir
um grito alegre
e desconhecido.
Se fico ou fujo para perto da flora,
onde o escombro é segredo,
a voz é brados (p. 33).

Rosi Whaikon, do Povo Piratapuia (AM), escreve Sou alguém e Renovar-se. Em País da fichas, descreve a indigência dos pobres em busca de saúde:

Você tem ficha?
Não tem jeito!
Você tem que ter ficha!
Nada feito!
Não posso fazer nada.
Volte outro dia!
Tem ficha? Não?
Sinto muito, não posso fazer nada!
Quero uma ficha para ir a médico.
Não tem.
Acabou!
Quando posso conseguir uma ficha?
Só daqui alguns meses.
É grave?
Você é médico?
Não!
Então por que essa pergunta?
Se for grave vai para Emergência
Você não tem cara de doente
Volte outro dia.
Mas preciso conversar com o médico!
O médico está de repouso
Você tem que pegar ficha!
Se eu não conseguir ficha?
Dá seu jeito!
Como dar meu jeito?
Quer dizer que vou ter que falsificar uma ficha?
Não, só preciso de uma ficha!

A segunda parte da obra, em prosa, traz Reflexões sobre o cotidiano, sabedoria indígena, afirmação identitária, produção intelectual e o sofrimento dos pobres. Alguns são nomes conhecidos, com presença na mídia, contatos internacionais e atuação em órgãos governamentais.

Trilhos urbanos, de Ailton Krenak, do Povo Krenak (MG), é um poema, nesta seção, falando do caminho e do movimento; 1990, relata encontros e desencontros entre indígenas em Manaus (AM), num texto fragmentário; IBGE 2002, mostra a dificuldade dos índios em serem contabilizados pelo órgão estatístico oficial e o processo migratório, em busca de vida; e 2009, registra os desterritorializados com a construção de hidrelétricas.

Kaudyly Umenobyry (nos primórdios dos tempos) é uma lenda indígena do Povo Kura-Bakairi (MT), a respeito da integração harmônica do ser humano com a natureza, conseguida com luta e esforço, em nome da sobrevivência.

Um índio, de Daniel Matenho Cabixi, do Povo Paresi (MT), relata a experiência de ser observado como um animal exótico, ouvindo perguntas como “será descendente de ‘comedores de gente’? Terá ele provado alguma carne humana? Tem ele algum sentimento de amor e compaixão?” E o que ele gostaria de dizer a essas pessoas, demonstrando sua cultura histórica, política e econômica, sua sensibilidade diante da vida e da natureza, e mostrando como sentimento são exteriorizados através da arte. “Mas a cegueira etnocêntrica, às vezes, não permite esse diálogo franco e sincero” (p. 48).

Sobre Tempo e Trabalho, de Daniel Munduruku, do Povo Munduruku (PA), reflete sobre o viés etnocêntrico, a visão do trabalho vinda da revolução industrial, o tempo indígena: passado e presente, lembrando o conselho “ 'a cada dia basta sua preocupação', disse um certo pajé chamado Jesus” (p. 50).



A Literatura Indígena é um Conhecimento Ancestral, de Edson Kayapó, do Povo Kayapó (PA), é uma abordagem das circunstâncias que propiciaram este momento em que a literatura possibilita a redescoberta de “que os povos indígenas brasileiros estão vivos, ativos e reativos, por mais que a História oficial e a própria Literatura nacional tenham silenciado essa condição” (p. 53).

Sobre Ser e Estar no Mundo: Caminhos Possíveis, de Severiá Idioriê, do Povo Karajá (TO) atuando na terra indígena Xavante (MT), relata a visita à cidade para receber seu primeiro salário. O simples transporte daquele “lugar sagrado, cheio de estrelas, pássaros, flores, lagos, riachos e enormes gafanhotos no mês de agosto” para a civilização, onde os “sentimentos são um misto de pavor, excitação e medo, iguais às sensações que tenho ao assistir um filme de suspense e terror”. Experimenta a discriminação de quem faz de conta que não a conhece e de quem se ofende ao vê-la, “gesticula pra espantar um mau cheiro, faz cara de nojo e suspira tipo: ‘meu Deus...’” A violência simbólica gera incredulidade e reflexão. “Sujeira a gente limpa com qualquer sabão, mas preconceitos não” (p. 55-56).

Nós somos os Filhos!, que titula essa resenha, é de Sulamy Katy, do Povo Potiguara (PB), e narra as emoções da vida na floresta: “falamos com passarinho, comemos beiju com carne de caça, corremos de raposa parida, vemos a morte se enroscar em nossos pés sob a forma de cobra grande, nadamos em lagoa encantada, somos curados com fumaça, nós somos filhos do ar!” p. 58).

E por último, e prenhe de sentimentos últimos, o Meu Poema, de Verônica Manaura, dos povos Manaós, Mura e brancos do seringal (AM), é o relato em prosa mais humano, candente e detalhado sobre o sofrimento das populações indígenas pobres, nesta coleção. Surge das lágrimas – torrenciais, insistentes e inarredáveis – no texto, que acabam com o senso poético, bloqueiam a capacidade do sonho, petrificam o ritmo do discurso. Relaciona o SOS das mulheres com o sós, ao serem abandonadas pela polícia, pelo governo e pelos líderes. Das crianças sem pais, nascidas dos estupros e da prostituição explorada pelos “que têm emprego, cargos políticos ou líderes que dão um dinheirinho ou uma comidinha tão instantânea como as transinhas – só para passar a fome. A fome das mulheres e dos abutres”. E o relato da morte da índia Tikuna idosa, depois de 15 dias no hospital, após ser violentada por cinco rapazes (p. 61).

O livro é tocante, visual, hermenêutico. As páginas em branco são completadas pelo azul do céu, o verde da floresta, o amarelo das penas de aves e o sangue do sofrimento humano. Isso me faz lembrar que quando morre um ser humano – abandonado, solitário frente à violência ou entregue à sorte – morre um pouco de cada um de nós. Por isso não devemos perguntar Por quem os sinos dobram? Eles dobram por você!, escreveu o teólogo inglês John Done ao introduzir o romance de Ernest Hemingway.

* Pesquisador da Cátedra Unesco de Leitura (PUC-Rio)

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Curso de Extensão: O discurso de Riobaldo e a Teologia Pública

Batistas repudiam a decisão de inocentar estuprador de adolescentes, do STJ

Antonio Carlos Ribeiro

Maceió (AL) – A Aliança de Batistas do Brasil (ABB) divulgou nota pública criticando a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de inocentar um homem acusado de estuprar três adolescentes de 12 anos. A alegação da ministra Maria Thereza de Assis Moura, relatora do processo, é de que as meninas “já estavam longe de serem inocentes, ingênuas, inconscientes e desinformadas a respeito do sexo”, tendo em vista que “já se prostituíam havia algum tempo”.


A entidade argumenta que está comprometida com a “defesa da causa dos empobrecidos e proscritos da sociedade” e com a luta pela “justiça com e para os oprimidos”. A nota divulgada lembra que “quando a Constituição de 1988 estava sendo formulada no Congresso Nacional, ONGs e movimentos sociais que atuavam na luta pelos direitos das crianças e adolescentes, encabeçados pelo Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua e Pastoral do Menor, se mobilizaram e colheram um milhão e meio de assinaturas para a inclusão do que hoje é o artigo 227 desta Carta Magna da nação”.

Como parte da sociedade, a ABB se sente agredida e com sua inteligência ofendida, especialmente porque o referido artigo afirma que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, que a ministra parece desconhecer.

O saber jurídico tomado por base para a decisão em nome do STJ parece ter sido desconsiderado, além do artigo constitucional, “toda a luta que tem sido travada contra a violência sexual que atinge, em proporções assustadoras, crianças e adolescentes no Brasil”. E por ser pública a lei 12.015, de 07 de agosto de 2009, que alterou o Código Penal, no qual consta “a determinação de que ter conjunção carnal ou ato libidinoso com menor de 14 anos é considerado Estupro de Vulnerável”, não consegue entender como simples equívoco.

O documento, assinado pela Pastora Odja Barros Santos, denuncia que mais danoso que a decisão que “abre fortes precedentes para a manutenção da violência contra a mulher no Brasil”, e consigna a sua “indignação, por considerar essa decisão do STJ um retrocesso na garantia dos direitos humanos no Brasil e mais uma ‘porta aberta’ para a impunidade”. Chama a sociedade a se manifestar contra “esse ato de desrespeito aos direitos das crianças e adolescentes”. E solicita que o STJ “reveja e mude a decisão em questão”.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Santa Teresa Neighborhood in Rio de Janeiro Commemorates the Passion of Christ on Trolley Tracks

Antonio Carlos Ribeiro

The celebration of the Lord’s Passion in the São Paulo Apóstolo parish church in Santa Teresa embodied the neighborhood’s struggle for its citizens’ rights, still suffering the consequences of the suspension of the trolley service, vital for the commercial and tourist undertakings of the residents, following a fatal August 27, 2011 accident.


The liturgical rite was comprised of 15 Stations of the Cross along the route from the church building to the trolley parking lot and back. Translated by the Rev. Daniel Cabral Jr. and adapted by the Rev. Luiz Caetano Grecco Teixeira from a liturgy by the St. George’s College of the Episcopal Church of Jerusalem and the Middle East, the rite sought to embody the situation of anguish and suffering of the families of the six persons who died in the trolley accident, the effects of the lack of the trolley service – decrease in commercial activity, reduction of public transportation, loss of neighborhood identity, sociability crisis, firing of trolley employees, and the state government's project seeking to foment tourism – that have brought distress to the residents.

The residents of Santa Teresa, along with members of different Christian churches and of other religions, took part in the liturgical remembrance through the responses and prayers for those presently suffering, all identifying themselves with the Lord’s own trials. The imprisoned, the violent, the sick, the starving, parents and mothers, and all who see in the disfigured face of Christ’s those who suffer from mental and spiritual fatigue, the children and elderly of the streets, the indigent and the dying were all lifted up. Following the Stations of the Cross, the participants were anointed in preparation for the Easter Vigil.

The reception of the Good Friday commemoration by the neighborhood was surprising. In addition to the members of the neighborhood Association of Residents, the trolley employees and the relatives of the victims of last years’ accident, there were those who watched from the windows of their homes, or sitting down in bars along the way, or who happened to be visiting with friends, all making up the dozens of people that " forget their passion so as to live that of the Lord,” as sings Milton Nascimento.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Ousadia, risco e avanço da ciência

Antonio Carlos Ribeiro

Ousadia e risco são os temas que relacionam três personalidades do início da psicanálise: Sigmund Freud, Carl Gustav Jung e Sabine Spielrein. O debate intelectualizado da ciência nascente, o final do século XIX e seus costumes, as relações humanas e o avanço da ciência marcam o enredo do filme Um Método Perigoso (A Dangerous Method, dirigido por David Cronenberg, com Keira Knightley, Michael Fassbender, Viggo Mortensen. Drama, Reino Unido, Alemanha, Canadá, Suíça).



Esse longa de Cronenberg mostra como as relações, que passam de amigáveis a tensas, entre Sigmund Freud (Viggo Mortensen) e Carl Jung (Michael Fassbender) provocam sérias discussões sobre o início da psicanálise, que se tornam relevantes por causa dos riscos no debate sobre a sexualidade humana. Para os teóricos da psicanálise, o debate é maior que a intensa e polêmica relação dupla com a paciente histérica Sabina Spielrein (Keira Knightley), que depois se integra ao grupo de debate da nova ciência. O filme foi exibido em primeira mão no Festival de Veneza de 2011 e conquistou uma indicação ao Globo de Ouro de Melhor Ator Coadjuvante para Mortensen.

A narrativa começa com o Dr. Jung atuando numa clínica psiquiátrica em Zurique e encarregando-se do caso da paciente, que além de ser complicado e exigir esforço do médico, o faz deparar-se com evidências de história familiar complicada, responsável pelo comportamento autodestrutivo. O contato com o pioneiro da psicanálise - chamado Professor Freud, de Viena, e que influenciou diversos profissionais da saúde e da psique - levou o jovem médico suíço a uma ativa troca de correspondência e experiências, com este profissional quarenta anos mais velho.

Logo, começam a surgir as diferenças entre os dois – a idade, a classe social, a religião e a personalidade – que interferem na condução da pesquisa, tocando em questões como método, procedimentos e, mesmo imprevisto, envolvimento. Estes os fazem divergir, a partir de determinado momento, especialmente em relação ao caso afetivo e sexual de Jung com a paciente, a dedicação desta à mesma investigação científica, mas sobretudo pela sua postura profissional, pela credibilidade da psicanálise que Freud tanto preza e defende, e pelas descobertas e conclusões a respeito da psique humana e a sexualidade.

O relacionamento com Spielrein, especialmente ao se tornar obsessivo, torna-se uma discordância insuperável entre Jung e Freud. A paciente também estudou o assunto, se mudou e com e eclosão da guerra foi perseguida e fuzilada pelos nazistas. Freud foi expulso da Academia Médica de Viena. E Jung lucrou com seu trabalho, sustentado pela mulher da nobreza e mantido protegido na Suíça, neutra no conflito.

O filme é um relato sensível, com humanidade, mostrando a estrutura familiar, médica e de pesquisa da época. Um mérito do filme está na qualidade do relato sem afetações, marca da direção de Cronenberg, que já lida com este ambiente cultural pela quarta vez, dando liberdade de ação e atuação aos personagens.

http://www.youtube.com/watch?v=hr51iY7yXpA&feature=related#!

sábado, 7 de abril de 2012

Santa Teresa vive a paixão nos trilhos do bonde

Antonio Carlos Ribeiro

Rio de Janeiro – A celebração da Paixão do Senhor na Paróquia São Paulo Apóstolo ganhou os traços da luta de Santa Teresa por cidadania. Os moradores ainda vivem sob o impacto da paralisação dos bondes – fundamentais à vida comercial e turística do bairro – após o acidente ocorrido em de 27 de agosto do ano passado. O rito compreendeu 15 estações, da saída da Igreja à entrada da garagem dos bondes e o retorno.


O rito foi traduzido pelo reverendo Daniel Cabral Jr e adaptado pelo reverendo Luiz Caetano Grecco Teixeira da liturgia da St. George College, da Igreja Episcopal de Jerusalém e Oriente Médio, para a situação de angústia e sofrimento das famílias das seis pessoas falecidas, dos efeitos da falta do bonde – queda da atividade comercial, redução do transporte, perda de identidade, crise de sociabilidade, demissão de funcionários dos bondes e o projeto do governo estadual visando o turismo – que angustiam a população do bairro.


As estações lembraram o julgamento de Jesus Cristo, a caminhada para o Calvário, a primeira queda, o encontro de Jesus com sua mãe, a ajuda recebida de Simão Cirineu, tem seu rosto enxugado por Verônica, caiu pela segunda vez, falou com as mulheres que choravam, caiu pela terceira vez, foi despojado de suas vestes, sofreu a crucificação, morreu, teve seu corpo retirado da cruz e entregue a José de Arimatéia, foi sepultado e teve sua ressurreição anunciada.


O rito litúrgico foi acompanhado pelos moradores do bairro, cristãos e de outras religiões, com os responsos litúrgicos, orações pelos sofredores do tempo atual, identificados com o sofrimento do Senhor. Lembram os condenados, os violentos, doentes, famintos, pais e mães, nos que vêm o rosto desfigurado do Cristo nos sofredores, nos que sofrem fadiga mental e espiritual, nas crianças e idosos recolhidos das ruas, nos moribundos e nos indigentes. Após as estações da via sacra, as pessoas entraram na comunidade para a unção dos santos óleos, se preparando para a vigília pascal.


Uma surpresa é a acolhida da população ao ato cúltico. Além dos que acompanharam - os membros da Associação de Moradores do bairro, os funcionários do bondes, os parentes das vítimas – os que surgem nas janelas, sentam às mesas dos bares ou estão em rodas de amigos, formando as dezenas de pessoas que ‘esquecem a sua paixão para viver a do Senhor’, como cantou Milton Nascimento.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Bispo anglicano apoia a campanha do bonde

Antonio Carlos Ribeiro

O bispo Filadelfo Oliveira, da Diocese Anglicana do Rio de Janeiro, consignou seu apoio à campanha “O bonde que queremos para Santa Teresa”. A assinatura foi aposta à lista após a celebração da Eucaristia e Ofício da Confirmação na Igreja São Paulo Apóstolo, em Santa Teresa, bairro afetado pela paralisação dos bondes após o acidente do dia 27 de agosto de 2011.


A campanha propõe o retorno imediato do serviço dos bondes, funcionando das 5 às 24 horas, com avaliação periódica pelos usuários e em gestão transparente e participativa de lideranças de diferentes associações de moradores do bairro.

O bispo justificou seu apoio porque o modelo vigente preserva a estética e técnica dos veículos, com aperfeiçoamento da segurança asseguradas no processo de tombamento nº E-03/31269/83 e a Resolução nº 047, de 25 de março de 1988.

D. Filadelfo espera que os bondes voltem a circular no menor prazo possível, desde que atendidas as exigências feitas. Ele concorda também que o prazo de reativação total do sistema seja de dois anos após a tragédia que matou seis pessoas, incluído o motorneiro.

O fato de não terem sido apuradas as responsabilidades, diante da falta de manutenção regular, é agravada, observou o pastor do rebanho anglicano do Rio de Janeiro, pela falta de diálogo do governo estadual e da insistência em criar um serviço turístico e não de transporte público da população, como o que já existia há 115 anos.

domingo, 1 de abril de 2012

Os Villas-Bôas, os índios, os militares e o roubo de terras

Antonio Carlos Ribeiro

O filme Xingu (Xingu, direção de Cao Hamburguer, com João Miguel, Felipe Camargo e Caio Blat. Brasil, 2011) conta a história dos irmãos Villas-Bôas: Cláudio (João Miguel), Orlando (Felipe Camargo) e Leonardo (Caio Blat), que participaram da Expedição Roncador-Xingu, na década de 1940. Eram formados em boas escolas, tinham uma visão humanitária e tinham como objetivo proteger os índios dos brancos, fatos que criaram conflitos com as elites, os governos locais e os militares.


A saga da família Villas-Bôas é a base do enredo da obra por diversos motivos. O primeiro é se diferenciar de uma elite bem formada – diferente da atual, já fruto da falta de valores, amorais que sequer abandonam princípios que nunca conheceram – , que tinha ideais objetivos, formação humanitária e ideais, e por isso queriam ir “onde o homem branco jamais tinha pisado”, defenderam o direito indígena às terras das quais já eram donos – diferente de quem gosta de delimitar espaços na terra, no ar e no mar, alguns sem jamais terem conquistado a si mesmos – e o ideal de criar um estado dentro do Estado brasileiro.

Essas três marcas vão acompanhá-los na empreitada de enfrentamento do território de biomas ambientais fronteiriços, do choque de civilizações quase resolvido pela dominação militar e técnica, das presenças da base aérea e dos brancos, que asseguram interesses e causam prejuízos fatais. E do confronto com a elite brasileira – endinheirada, com parcos percentuais de cultura e meios de recrutar profissionais bem formados e mercenários, nem sempre nesta ordem – diante de quem é preciso legislar, garantir a aplicação da lei e entrar no grande jogo de poderes, de cúpulas e cópulas, com muitas concessões e muito pouca moral.

Esses são os ingredientes para falar de um país que meio século depois de criado o Parque Nacional do Xingu ainda vive tensões para afastar latifundiários, pecuaristas, madeireiros e investidores estrangeiros, com pouco senso de brasilidade, nenhum compromisso e muito dinheiro e influência para comprar terras, relativizar cláusulas pétreas, inventar ordem jurídica onde o Estado não se faz presente – até fazer o país retroceder 120 anos, na verdade voltar aos três séculos e meio de escravidão, os tempos obscuros que emporcalham a elite imperial – e que só fará sentido para ação individual de gente jovem e aguerrida, mesmo sob riscos e ameaças.

Uma conquista fundamental da obra de Hamburguer é a de certa cidadania jovem, honesta, culta, que ocupa espaços, usa recursos públicos e tem discurso agregador e não predatório, como as bancadas ruralista e da bala no Congresso. O risco é o país recobrar a possibilidade de lidar com senadores que parecem impolutos, exploram escravos modernos em suas terras, de partidos de direita, que defendem seus interesses, rastreiam escutas do tempo da arapongagem da ditadura e se envolvem com contraventores, com dinheiro de 1º escalão e práticas típicas do último.

O diretor destacou o preconceito que as elites – com a garantia de sua reprodução massiva pela mídia de elite – têm com os índios: "vi que infelizmente os brasileiros não aceitam os índios até hoje. É um absurdo essa rejeição, mas ela existe". Não precisou se esforçar para perceber isso. Durante as gravações, na floresta amazônica, viu as queimadas nas fazendas próximas e o desmatamento: "o tanto de queimadas que há naquele local, o tanto que desrespeito em não se importar com a preservação da floresta é absurda. É um tesouro que temos que o Brasil está destruindo", denunciou.

Ele chegou ao tema por meio do cineasta Fernando Meirelles, que produziu o filme, procurado pela família de Orlando para que levasse a história dos irmãos Villas-Bôas para as telonas. Primeiro, ele ignorou a proposta, mas foi convencido pela leitura de A Marcha para o Oeste, o diário escrito pelos irmãos durante a expedição, pelo qual ficou encantado. "Quando o Fernando me explicou, pedi um tempo para pesquisar, pois tinha poucas informações deles. Mas ao entender quem eram os Villas-Bôas, achei a história muito envolvente", explicou o diretor.

Outro que se envolveu apaixonadamente foi Marcelo Torres, o diretor de produção, que disse poder imaginar lugares com beleza e preservação indescritíveis. “Desde muito novo percorro a região Centro-Oeste em viagens de pescaria com meus pais, meus tios e meus primos. Então sugeri o Tocantins por ser um lugar onde a natureza ainda mantém seu equilíbrio. Lugar onde temos rios limpos, pássaros e animais silvestres, um lugar onde poucos pés humanos pisaram”, observou.

A antropóloga Maria Büller trouxe peculiaridades retiradas das famílias e conhecidos dos irmãos para o projeto. O filme demorou cinco anos para ser concluído, entre produção e filmagens. As primeiras gravações foram durante os três primeiros dias na viagem para o Parque Indígena do Xingu, no Nordeste do Mato Grosso, na divisa com Tocantins, já na floresta amazônica, onde hoje vivem 16 povos indígenas. "Conseguimos um material riquíssimo e infelizmente muitas cenas tiveram que ficar de fora", lamentou o diretor.

Hamburguer explicou como escolheu João Miguel para o papel de Cláudio, o líder da expedição: "já conhecia o trabalho dele e sabia que tinha a capacidade. A partir do João, pensei no Caio porque já tínhamos trabalhado juntos e conheço o seu talento. E o Felipe, eu tinha certeza que iria dar o tom certo para o papel. Fiquei muito satisfeito com o resultado", acrescentou. Foram feitos testes para a escolha do núcleo dos índios. Segundo o diretor, esses "atores" se dedicaram ao projeto. "Escolhemos os melhores e nem pareciam que estavam atuando", disse. A produção de Xingu custou R$ 14 milhões.

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