Antonio Carlos Ribeiro*
Para meus curumins, Pedro e Vitória!
Feitos esses recortes, descobre-se
a tarefa da literatura indígena infantil e juvenil, e seus caminhos possíveis.
Ela se origina naqueles saberes não ditos, não escritos, codificados em
linguagem informal, muitas vezes apenas ambientais, sensoriais – com o uso
apurado dos cinco sentidos e o aporte de um sexto que os interliga, recuperando
a condição humana que a eles empresta sentido existencial.
O que é significativo na vida de
todos os seres humanos é guardado pelo mistério (da palavra grega mysterium que chega ao latim como sacramentum) e é comumente traduzida
como o sinal visível de uma ausência. Por isso, em nossa cultura, a cadeira do
avô é mantida na sala, o retrato da avó continua no quarto e o pátio é
preservado com as árvores, os brinquedos e os riscos no chão para brincar de
amarelinha. Isso significa que essas coisas são mais que coisas. Elas guardam
fios invisíveis de memória e têm o poder de evocar sentimentos, imagens, sons,
cheiros, cores e sabores que trazem de volta a capacidade mágica de ser
revisitados por aqueles que fazem parte do momento fundante de nossa vida.
Nas tradições indígenas essa
intermediação é feita pela floresta, os rios, os animais, o plantio e conjunto
do ecossistema que integra o habitat desses povos. Assim, preservar esse ecossistema,
para esses povos não é apenas a sobrevivência biológica e a criação das
condições para a preservação da vida humana na terra. É recuperar a memória,
que nos traz de volta as raízes mais profundas, fundacionais do mundo – a
partir do qual lemos tudo à nossa volta – estruturantes do olhar, que ao se
dirigir à natureza, nos faz encontrar-nos com nós mesmos, deparar-nos com aquela
parte da personalidade humana que não está acessível pela razão.
A razão, que no mundo ocidental,
especialmente nas culturas mais ricas, parece fundamental, é representativa
dessa lógica do domínio das situações, do controle dos outros, do poder sobre
as coisas que nos faz pretensiosos, arrogantes e quase convictos. Julgamos
poder colocar todos os conceitos sob seu controle, desde suas descrições mais
básicas. O substantivo surge da pretensão de nomear a substantia, a essência, e muitos ainda creem que a palavra mantém aquele
significado, a partir do qual aquilo tem sentido para as pessoas.
Movimento inverso é o vivido por
esses povos, dentre eles, especialmente os poetas. Da palavra de Ailton Krenak
sobre poesia indígena na Feira do Livro Indígena de Mato Grosso (FLIMT), em
outubro de 2009, aprendi a diferença da lógica do mundo ocidental para a dos
povos indígenas. Segundo ele, as pessoas se deixam perpassar por todo esse
conjunto à sua volta e o que fazem emprestar sua capacidade, emoção e talento a
essas forças que o perpassam, tomam conta, contribuem para adentrar o mistério.
Aqui vale lembra que o mistério não esconde, mas contraditoriamente, revela.
Possuídas pelo mistério as
situações se descortinam, os horizontes se abrem e a conexão das imagens
permite compreender, aprender junto, distinguir os entretons. Lembra a figura
da tradição cristã – perdão por todo o mau significado que cristão, branco e
ocidental evocam! – para falar de perceber o que está presente, mas não pode
ser visto, como o véu da noiva no momento do sim no casamento (apocalipse = desvelar). O mistério pede
respeito, ao conteúdo e ao processo, e isso é parte constitutiva do se
aproximar. O cuidado é exigido porque aquilo de que aproximo é maior, é fontal,
é constitutivo. Por isso, tirar as sandálias dos pés, se curvar, reverenciar.
É com essa atitude, que a gente
pode se aproximar da cultura dos povos indígenas. Lembre que estás pisando solo
sagrado, da história das vítimas, da memória dos injustamente vencidos, dos que
tiveram seu sagrado pisado. Esse é o primeiro passo, reverenciar. O segundo, é
deixar-se possuir pelo mistério. Se
achegar à ancestralidade, sem esquecer que ela é prenhe da memória viva dos
antepassados, é nutrida da sua história de luta e afirmação, é marcada por dor
e sofrimento, e por isso é a semente que mantém esses povos vivos e lutando.
E a literatura infantil e juvenil
é a forma mais bela, quiçá prazerosa, de adentrar esse templo, a natureza, na
qual desde tempos imemoriais, esses povos vivem e celebram. Quando a gente
vagueia pela obra de Daniel Munduruku, entre diversos outros autores indígenas,
se depara com esse horizonte.
Em Você lembra, pai, ele trata das questões da relação pai-filho.
Lembra o cotidiano, o ambiente do crescimento, os ritos de passagem, sempre
marcados pela memória do pai. Poderosas memórias evocativas – ligadas a momentos
significativos – são esse referencial. Os registros espirituais e afetivos são
mais fortes que os racionais e intelectuais. Mexem com a vida toda e não apenas
com a razão. A inteligência emocional tem mostrado hoje que quem ama mais
muitas vezes chega antes às respostas.
A Sabedoria das águas, do mesmo autor e na mesma temática, trata da
mística do cotidiano, aponta para a espiritualidade, descreve dilemas
existenciais de um índio jovem e sua mulher. Mostra essa liturgia necessária para
viver os mistérios da vida e contemplar o que só pode ser visto pelos iniciados
naquele rito. Mais que isso, se baseia na sabedoria ancestral, herdada de
tempos imemoriais, construída pela mística dos xamãs e testemunhada pela para-oikia (paróquia), a comunidade peregrina.
O mistério em vasos de barro é a comunidade humana.
Essa mística é a que guarda os
saberes da vida e da sobrevivência do cotidiano: da obtenção das condições de
vida, das sementes; dos tempos de plantio e colheita, frio e calor, sol intenso
e chuva abundante; dos alimentos, orações, remédios e cuidados. Os papéis de
cada membro, o aprendizado dos pequenos e dos jovens, a força da experiência
dos adultos e a sabedoria dos mais velhos. Em cada uma destas etapas há os
sinais, os cuidados, os riscos, as precauções e as maldições.
A mística da manutenção da vida, dos
curumins, dos guerreiros, das mulheres e dos anciãos da tribo, vai dos cuidados
básicos à completa liberdade para cada espaço: a tenda, o pátio, a aldeia e os
espaços das aldeias, lembrando os protegidos da profanação como o lugar de
culto e da sepultura dos mortos, com riscos que variam do perigo da natureza
aos letais, que passam pelas forças que surgem das disputas. A mística da
defesa de espaços de luta e sobrevivência passa pela caça e a pesca, com a
obtenção de condições de caçar, transportar, preparar os alimentos. No interior
das florestas.
A literatura infantil e juvenil,
que deve ser mais prestigiada, por ser uma extensão da memória para as novas
gerações, nos convida a “entrar numa compreensão mais circular, tradicional,
ancestral. Esse pensar nos remete à ideia de que as coisas estão integradas
entre si e que elas – as coisas – trazem um saber que lhe é peculiar e que se
manifesta a quem está atento aos sinais do universo. Isso tem sido mantido
pelos povos indígenas ao longo dos milhares de anos que habitam este planeta”,
observa Munduruku (Você lembra, pai, p.
9).
Muito desse saber, a gente só
recebe pela experiência. Quando tive contato com Cristino Wapichana, na FLIMT
2009, que me contou como uma tribo lida com o problema da violência especialmente
em um ou outro jovem. Quando o grupo percebe isso, não reage a este
comportamento, ao mesmo tempo que cria as condições para que o jovem índio
perceba isso. Caso isso não resolva, o pagé entra em cena. Ele pega uma formiga
grande e põe sobre o corpo do rapaz, que o pica imediatamente e é logo retirada.
A dor é forte e o rapaz começa gritar. E então, o mesmo pagé administra o
antídoto. Assim, ele explicou como existem mecanismos naturais, usados pelo
pagé para conter o ímpeto dos jovens. É uma forma de lidar com a pulsão e a violência.
Logo percebemos a diferença entre as sociedades tribais e a nossa sociedade.
Esse método diminui sensivelmente os casos de conflito. Mas é bom lembrar que as
sociedades indígenas não têm polícia, nem ministério público e nem
judiciário.
A literatura infantil e juvenil
guarda todos esses saberes. Por isso deve ser estimulada, preservada, fomentada
e subsidiada. E o papel de uma instituição como a Cátedra UNESCO de Leitura
(PUC-Rio) é apoiar essa iniciativa.
Referências bibliográficas:
MUNDURUKU, Daniel. Coisas de Índio. São Paulo: Callis,
2000.
________. Coisas de Índio; versão infantil. São Paulo: Callis, 2003.
________. Sabedoria das águas. Ilustração de Fernando Vilela. São Paulo:
Global, 2004.
________. O segredo da chuva. Ilustração de Marilda Castanha. São Paulo:
Ática, 2003.
________. Você lembra, pai? Ilustração de Rogério Borges. São Paulo: Global,
2003.
* Pesquisador na Cátedra UNESCO de Leitura (PUC-Rio)
Comentários a esta publicação:
http://www.catedra.puc-rio.br/blog/?/121/literatura+indigena+.htm
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Um comentário:
Palavras insinuantes! De vida e resgate cultural!
Sabem qual a proposta do MEC para as tribos indígenas brasileiras no que tange a socialização de sua cultura através da literatura? Não sei! Talvez pela minha ignorância em relação a vida e a memória desse povo.
Só sei que os livros de literatura infanto juvenil fruto da produção de grandes intelectuais brasileiros selecionados pelo PNLD/MEC para as escolas públicas, praticamente não contemplam esse grupo social.
Diferenças/diversidade para o MEC? A seleção é classista, é hierárquica, contempla a cultura legitimada pela classe dominante.
Ao analisar os textos dos livros didáticos do 1º ao 9º ano do Ensino Fundamental, período em que o direito a educação básica é SUBJETIVO, é possível enumerar quantos textos se destinam a memória e vida da cultura indígena. São poucos!!!
PARABÉNS PELO TRABALHO!
Fernanda Bevilaqua.
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