domingo, 22 de abril de 2012

Nós somos só os Filhos!


Antonio Carlos Ribeiro


Para meus curumins, Pedro e Vitória!

Antologia Indígena é uma obra coletiva (MUNDURUKU, Daniel; WAPICHANA, Cristino. Antologia Indígena. Cuiabá: Flimt/SEC, Inbrapi, 2009), trazida a lume na Feira do Livro Indígena de Mato Grosso (Flimt), realizada de 6 a 10 de outubro em Cuiabá (MT), publicada pela Secretaria Estadual de Cultura (SEC) e o Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (Inbrapi), com a participação de populações de 25 etnias, entidades indígenas, ONGs, com editores e mais de 100 autores de diversas regiões do país.

A introdução é feita a partir de uma imagem e três palavras. A figura é um caracol centrífugo, elaborado por Cristino Wapichana, significando o movimento indígena pelo mundo. A primeira, do Secretário Estadual de Cultura, Paulo Pitaluga, retoma a ênfase do bispo espanhol Bartolomé de Las Casas em debate teológico no velho continente: o índio tem alma! Mas lamenta que invasores brancos “acabaram com nações, etnias, tribos e aldeias; liquidaram com sua cultura material e imaterial, seus saberes ancestrais, sua religiosidade e crenças, seus mitos e lendas, sua língua mater; arrasaram seus espaços de vida; acabaram com seus meios de sobrevivência; escravizaram-nos, mantendo-os século sob correntes e processos avassaladores de aculturação; mataram os pajés, os caciques, os guerreiros, as mulheres e as crianças” (p. 7).

A segunda, de Daniel Munduruku, coordenador do Núcleo de Escritores e Artistas Indígenas do Inbrapi (Nearin), convida a “entrar numa compreensão mais circular, tradicional, ancestral. Esse pensar nos remete à idéia de que as coisas estão integradas entre si e que elas – as coisas – trazem um saber que lhe é peculiar e que se manifesta a quem está atento aos sinais do universo. Isso tem sido mantido pelos povos indígenas ao longo dos milhares de anos que habitam este planeta” (p. 9), observa a respeito destas reflexões em versos, prosas, narrativas, mitos.

A terceira parte da introdução é um poema cantado pelo compositor Márcio Bororo, dando as boas-vindas a Cuiabá, através  do “bradar de muitos guerreiros de uma terra simples e gentil, o chamado dos povos indígenas do coração do Brasil” (p. 11). O livro é dividido em duas partes. Poesias, a primeira, e Reflexões, a segunda, reunindo autores e autoras de diferentes povos indígenas, atuando em diversas frentes e vivendo e todas as regiões do país, dos quais retire fragmentos, como aperitivos.




Aurilene Tabajara, de Poranga (CE), inaugura seção Poesias com Somos povos livres, lembrando a bravura, os massacres, a discriminação, mas preservando as raízes na história, no saber e na cultura:

Nossa cultura está viva
em geração e memória,
somas de experiências
dos ancestrais em trajetória (p. 15)

Carlos Tiago, do Povo Saterê-Mawé (AM), publica Legado de Índio, Velho índio, Medo da noite e Sombras e raízes, que declamou no Caxiri Literário:

Sombras e raízes
pelo medo dos deserto.
Esqueletos de florestas,
veias secas dos rios.
Porque gosto da chuva
sem o cheiro dos ácidos cuspidos
pela boca da ganância humana.
Porque quero sempre ver o arco-íris,
desenhado por frutas, flores e nuvens.
Porque é necessária a luta pela preservação da vida
que emerge do âmago de minhas tradições
...
Sombras e raízes,
Porque meu sonho é de uma
Amazônia sempre verde.
Verde como os sonhos índios.
Olhos de florestas e da cunhã
sentada na beira do rio
namorando o carinho do vento,
desejando o abraço da chuva,
navegando nas curvas do encanto das águas (p. 20-21).

Cristino Wapichana, do Povo Wapichana (RR), canta o Sonho e a Paz:

Quero a paz todos os dias.
Vou percorrer o mundo
e levar toda a alegria que puder.
Hoje, já muita violência;
tanta destruição, tantas guerras, muitas dores,
vidas cheias de terrores!
Já não sentem a luz do sol...
Já não ligam mais pras flores...
Não conseguem ouvir, do canto, o som da paz... (p. 22)

Eliane Potiguara, do Povo Potiguara (RN), registra a Identidade Indígena, um texto de 1975 marcado pela indignação, a mística e a expectativa de reconhecimento:

Sou uma agulha que ferve no meio do palheiro.
Carrego o peso da família espoliada, desacreditada,
Humilhada, sem forma, sem brilho, sem fama.
Mas não eu só. Não somos dez, cem ou mil
que brilharemos no palco da História.
...
E nós, indígenas de todo o planeta,
só sentiremos a fome natural,
e o sumo de nossa ancestralidade
nos alimentará para sempre (p. 23, 25)

Graça Graúna, do Povo Potiguara (PB), traz uma Canção peregrina:

As pedras do meu colar
são história e memória
do fluxo do espírito
de montanhas e riachos
de lagos e cordilheiras
de irmãos e irmãs
nos desertos da cidade
ou no seio das florestas (p. 27)

Luciana Kaingang, do Povo Kaingang (RS), dedica Onde você se esconde? à mulher e seu papel no cotidiano:

Onde você se esconde, mulher Kaingang?
Tão bela entre tantos gentios
que nossa própria nação não enxerga;
Olhos tapados pela dor das derrotas!
...
Nós, considerados povos sofridos e embrutecidos e feios...
Mostra a eles, minha bela,
o tamanho de nossa educação,
o tamanho da nossa beleza, concentrada num só rosto:
no teu rosto queimado de sol! (p. 29)

Manoel Fernandes Moura, do Povo Tukano (AM), traz o Lamento Nacional de um Guerreiro, uma releitura do Hino Nacional Brasileiro, entrecortando-o com os gritos da tortura, do abandono, da doença e da morte:
Ouviram do Ipiranga, às margens plácidas,
atrás das margens, gritos reprimidos por tortura,
lágrimas de um povo heróico – o brado que não retumba.
O sol da liberdade, em raios contidos,
tem vergonha de brilhar na nossa Pátria
...
Se a mentira desta igualdade conseguimos demonstrar com braços mortos,
em teu seio, ó Liberdade, desafia a mortandade planejada.
Ó Pátria amada, atraiçoada, queremos te salvar! (p. 31)

Rony Wasiry Guará, de Boa Vista dos Ramos (AM), apresenta Revelação e Um grito na floresta:

Eu fugi.
Fugi do medo
da tua mensagem,
do teu amparo.
Fugi do teu grito,
do teu silêncio,
com medo,
com medo que prendessem, prendendo minha vontade
de ouvir
um grito alegre
e desconhecido.
Se fico ou fujo para perto da flora,
onde o escombro é segredo,
a voz é brados (p. 33).

Rosi Whaikon, do Povo Piratapuia (AM), escreve Sou alguém e Renovar-se. Em País da fichas, descreve a indigência dos pobres em busca de saúde:

Você tem ficha?
Não tem jeito!
Você tem que ter ficha!
Nada feito!
Não posso fazer nada.
Volte outro dia!
Tem ficha? Não?
Sinto muito, não posso fazer nada!
Quero uma ficha para ir a médico.
Não tem.
Acabou!
Quando posso conseguir uma ficha?
Só daqui alguns meses.
É grave?
Você é médico?
Não!
Então por que essa pergunta?
Se for grave vai para Emergência
Você não tem cara de doente
Volte outro dia.
Mas preciso conversar com o médico!
O médico está de repouso
Você tem que pegar ficha!
Se eu não conseguir ficha?
Dá seu jeito!
Como dar meu jeito?
Quer dizer que vou ter que falsificar uma ficha?
Não, só preciso de uma ficha!

A segunda parte da obra, em prosa, traz Reflexões sobre o cotidiano, sabedoria indígena, afirmação identitária, produção intelectual e o sofrimento dos pobres. Alguns são nomes conhecidos, com presença na mídia, contatos internacionais e atuação em órgãos governamentais.

Trilhos urbanos, de Ailton Krenak, do Povo Krenak (MG), é um poema, nesta seção, falando do caminho e do movimento; 1990, relata encontros e desencontros entre indígenas em Manaus (AM), num texto fragmentário; IBGE 2002, mostra a dificuldade dos índios em serem contabilizados pelo órgão estatístico oficial e o processo migratório, em busca de vida; e 2009, registra os desterritorializados com a construção de hidrelétricas.

Kaudyly Umenobyry (nos primórdios dos tempos) é uma lenda indígena do Povo Kura-Bakairi (MT), a respeito da integração harmônica do ser humano com a natureza, conseguida com luta e esforço, em nome da sobrevivência.

Um índio, de Daniel Matenho Cabixi, do Povo Paresi (MT), relata a experiência de ser observado como um animal exótico, ouvindo perguntas como “será descendente de ‘comedores de gente’? Terá ele provado alguma carne humana? Tem ele algum sentimento de amor e compaixão?” E o que ele gostaria de dizer a essas pessoas, demonstrando sua cultura histórica, política e econômica, sua sensibilidade diante da vida e da natureza, e mostrando como sentimento são exteriorizados através da arte. “Mas a cegueira etnocêntrica, às vezes, não permite esse diálogo franco e sincero” (p. 48).

Sobre Tempo e Trabalho, de Daniel Munduruku, do Povo Munduruku (PA), reflete sobre o viés etnocêntrico, a visão do trabalho vinda da revolução industrial, o tempo indígena: passado e presente, lembrando o conselho “ 'a cada dia basta sua preocupação', disse um certo pajé chamado Jesus” (p. 50).



A Literatura Indígena é um Conhecimento Ancestral, de Edson Kayapó, do Povo Kayapó (PA), é uma abordagem das circunstâncias que propiciaram este momento em que a literatura possibilita a redescoberta de “que os povos indígenas brasileiros estão vivos, ativos e reativos, por mais que a História oficial e a própria Literatura nacional tenham silenciado essa condição” (p. 53).

Sobre Ser e Estar no Mundo: Caminhos Possíveis, de Severiá Idioriê, do Povo Karajá (TO) atuando na terra indígena Xavante (MT), relata a visita à cidade para receber seu primeiro salário. O simples transporte daquele “lugar sagrado, cheio de estrelas, pássaros, flores, lagos, riachos e enormes gafanhotos no mês de agosto” para a civilização, onde os “sentimentos são um misto de pavor, excitação e medo, iguais às sensações que tenho ao assistir um filme de suspense e terror”. Experimenta a discriminação de quem faz de conta que não a conhece e de quem se ofende ao vê-la, “gesticula pra espantar um mau cheiro, faz cara de nojo e suspira tipo: ‘meu Deus...’” A violência simbólica gera incredulidade e reflexão. “Sujeira a gente limpa com qualquer sabão, mas preconceitos não” (p. 55-56).

Nós somos os Filhos!, que titula essa resenha, é de Sulamy Katy, do Povo Potiguara (PB), e narra as emoções da vida na floresta: “falamos com passarinho, comemos beiju com carne de caça, corremos de raposa parida, vemos a morte se enroscar em nossos pés sob a forma de cobra grande, nadamos em lagoa encantada, somos curados com fumaça, nós somos filhos do ar!” p. 58).

E por último, e prenhe de sentimentos últimos, o Meu Poema, de Verônica Manaura, dos povos Manaós, Mura e brancos do seringal (AM), é o relato em prosa mais humano, candente e detalhado sobre o sofrimento das populações indígenas pobres, nesta coleção. Surge das lágrimas – torrenciais, insistentes e inarredáveis – no texto, que acabam com o senso poético, bloqueiam a capacidade do sonho, petrificam o ritmo do discurso. Relaciona o SOS das mulheres com o sós, ao serem abandonadas pela polícia, pelo governo e pelos líderes. Das crianças sem pais, nascidas dos estupros e da prostituição explorada pelos “que têm emprego, cargos políticos ou líderes que dão um dinheirinho ou uma comidinha tão instantânea como as transinhas – só para passar a fome. A fome das mulheres e dos abutres”. E o relato da morte da índia Tikuna idosa, depois de 15 dias no hospital, após ser violentada por cinco rapazes (p. 61).

O livro é tocante, visual, hermenêutico. As páginas em branco são completadas pelo azul do céu, o verde da floresta, o amarelo das penas de aves e o sangue do sofrimento humano. Isso me faz lembrar que quando morre um ser humano – abandonado, solitário frente à violência ou entregue à sorte – morre um pouco de cada um de nós. Por isso não devemos perguntar Por quem os sinos dobram? Eles dobram por você!, escreveu o teólogo inglês John Done ao introduzir o romance de Ernest Hemingway.

* Pesquisador da Cátedra Unesco de Leitura (PUC-Rio)

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