quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Sociedade, Violência e Ética

Participação em Mesa de Debates promovida pela Faculdade Béthencourt da Silva (FABES), Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro (FAETEC) e Associação Brasileira de Tecnologia (ABT) - Rio de Janeiro, 1º de setembro de 2011

Antonio Carlos Ribeiro

O tema deste debate é extremamente atual. Para analisar o trinômio Sociedade, violência e ética, decidi visitar algumas dores de nossa sociedade e buscar respostas em seu olhar cultural. Este tema que pode ser abordado a partir da lógica binária dos ruídos e dos silêncios, dos gritos dos inocentes e dos que são vitimizados por ousar por sua voz a serviço deles (eu sou a voz, eu sou a porta, eu sou o pastor – expressões de Jesus no evangelho de João) e a dos que agem em defesa dos seus interesses – dos que controlam áreas da cidade, da economia e até do mercado da diversão, como quem força a entidade que administra atividade esportiva a submeter-se à sua grade de programação. De forma legal, ilegal, e legal mas injusta. Ancoradas em firme estrutura maniqueísta e aristotélica, que estabelece a negação absoluta entre os dois pólos. Afirmar um lado é negar o outro e, pior, submeter-se inteiramente à sua lógica. Sem caminhos alternativos. Na verdade, afirmar a legitimidade única de um lado é já desqualificar o outro, resultando num raciocínio condenado a ser excludente. E ficamos amarrados às mais primitivas formas de relação de poder, pré-históricas.

Essa noção invadiu os saberes, as ciências e, nas artes, a teledramaturgia, que no Brasil ganhou o status de formador de opinião e tido como “espaço de debate” de grandes temas. Em que as pessoas consomem passiva e acriticamente conteúdos. Lembram do filme “Muito além do Jardim”, com Peter Sellers, em que o além era a TV? E não nos damos conta da tradição cultural fabricada, redigida, roteirizada, gravada e editada, em ritmo de cumprimento de contrato, década após década. As pessoas já se perguntaram: quem matou Odete Roitman? – que virou chamada de jornal – quem matou Salomão Hayala? e, há três semanas: quem matou Norma Amaral? Mas poucos, só quem lê notícias, ou as ouve na TV, se perguntou: quem assassinou a juíza Patrícia Acioli? A diferença é que este caso não é ficção.

No dia 21 de julho, uma vigília durante a noite e uma missa na manhã seguinte lembraram os 18 anos da chacina da Candelária, quando seis crianças e dois adultos, dos 70 moradores de rua que dormiam na porta da Igreja da Candelária foram assassinados por policiais militares, em 1993, sem se dar conta que atualizavam a tradição de matar crianças, de Herodes, assustado com o nascimento do messias. Um dos sobreviventes, Sandro Barbosa do Nascimento, sequestraria o ônibus 174, exatos sete anos depois e também morreria, após matar uma professora. Fomos nos insensibilizando com doses maciças de sensacionalismo narcotizante que produz percentuais de crescimento, mas nos impede de viver as etapas. Não conseguimos reagir aos fatos, contar nossos mortos, chorar nossas misérias, lamentar os salários pagos, sofrer com os fatos e reelaborar nosso ser no mundo.

Por isso, o olhar da imprensa focado só na leitura e nas cifras da publicidade, só viu a intervenção desastrosa da Polícia e, condenada à repetição, como no mito grego de Sísifo que empurra a pedra ao monte, de onde logo rolará, obrigando-o à tarefa interminável, repetitiva e monótona, frequente em sociedades que só resolvem problemas imediatos e não se defrontam com os dilemas da inclusão, que perpetuam situações urgentes, as mesmas de décadas – dualismo semelhante ao da miséria e ostentação – que teria levado Charles De Gaulle a indagar se este país era sério.

Isso traz de volta uma irresponsabilidade social histórica: a de submeter pessoas sequestradas da África, trazidas em navios em tão precárias condições e com tal índice de mortandade, que lhes valeu o epíteto de ‘tumbeiros’ e aqui escravizá-las por quase quatro séculos. O Congresso Nacional, nesta cidade, tinha 30 grupos de parlamentares – dos que defendiam pequenas concessões ao poder absoluto das oligarquias rurais aos que pregavam embarcar a população negra em navios mar adentro, à deriva – todos escravistas. Fomos o último país das Américas a abrir mão desta forma vil de exploração do trabalho. A violência silenciosa, que a sociedade emocionalmente esterilizada já nem sente, desce raízes neste passado vergonhoso.

Esse encontro de hoje permite voltar a isso, para ver se a sociedade abdica de certo senso moral e decide acertar contas com o passado. Sem a consciência histórica que podemos desenvolver junto com a formação, não temos chances de mudar. Ficamos enredados no labirinto do minotauro, em conflito com os que controlam grandes riquezas e sem forças para mudar, restando-nos o lamento imortalizado na voz de Elis Regina: “É você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem”, razão pela qual “ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais...”

Porque a morte fictícia ocupa páginas em jornais, blogs e espaços em rádio e TV, para discutir entretenimento de baixa qualidade em que profissionais submetem seu saber a temas risíveis (que é a mesma coisa, mas conota outro sentido). E por que a população não gastou um terço, ou mesmo um décimo desse tempo para debater o fim trágico da juíza? Porque se trata de um fato real, que não dá margem para disfarçar, negociar, atenuar ou negar. Preferimos assegurar a existência do corpo, o nosso, ao invés dos muitos que vimos e dos que virão.

Exemplifico. Quando fomos disciplinados duramente por qualquer figura de autoridade, sofremos. Se o castigo não foi justo, sofremos a segunda vez. E se não pudemos falar sobre isso com quem nos impôs o castigo, sofremos terceira vez. Todos passamos por isso, em algum momento e por motivos diversos. Entendem o que digo. E é neste exato momento que o medo se assenhoreia, cria dois silêncios: o da ameaça velada ou explícita, e o dos cemitérios. O primeiro nos faz temer a ameaça. O segundo, lembra os mortos de quem falar. Os dois macabros. E a sociedade segue refém do silêncio da violência, da frustração pela falta do debate, e pela desmemória produzida, e inoculada para que as pessoas se refreem, se castrem e neguem todo e qualquer ímpeto para reagir. Então, a mídia não fala mais no assunto e explica, sem cerimônia, que ninguém mais debate o tema. E novamente se faz silêncio!

Esse silêncio é contrário à festa, ao encontro, ao debate. Os espaços marcados pela violência são cercados de silêncio. Os gritos de horror tamponados não ajudam a sociedade a confrontar-se consigo mesma, não favorecem a confiança na cidadania e negam os sentimentos bons e verdadeiros – aqueles mesmos que fazem de nós seres humanos – que Chico Buarque de Holanda poetizou e cantou em Roda Viva: “Tem dias que a gente se sente / Como quem partiu ou morreu / A gente estancou de repente / Ou foi o mundo então que cresceu... / A gente quer ter voz ativa / No nosso destino mandar / Mas eis que chega a roda viva / E carrega o destino prá lá ... / Roda mundo, roda gigante / Roda moinho, roda pião / O tempo rodou num instante / Nas voltas do meu coração...”.

E enquanto reina o silêncio, nosso povo não se encontra consigo mesmo. Volta, como nos filmes de terror, ao horror negado, aos medos recalcados, à insegurança pessoal, que cresce à medida que a institucional tudo controla. E a gente finge que acredita, para corresponder a quem finge falar a verdade, substitui a fala pelo sussurro ao pé do ouvido, sofre ao ter que mentir para os filhos – até por medo que adolescentes com hormônios em ebulição cometam uma incontinência verbal e sejam vítimas do crime de falar a verdade – e, o pior, pior, pior de tudo, ao mentir para nós mesmos. E, ao preferir a mentira e acolhê-la graciosamente em nossa consciência, re-mastigamos a violência, damos à mentira o nome de verdade. E sofremos ao descobrir que o pior mentiroso é o que mente para si mesmo, e crê! Eis o que somos.

Essa violência não dá as caras. Os que a praticam temem mais o debate que a prisão. A prisão e a morte neste país foram feitas para os opositores do poder, mesmo que tenham causas legítimas, como Frei Caneca, enquanto os violentos e mentirosos seguem negando, com acesso aos meios de comunicação e mantendo o discurso auto-vitimizador. MAS, sem a garantia do espaço de silêncio em torno de si, a violência cede. É aí que entra a sociedade. Todo espaço de silêncio em torno de um crime, de uma violência, da negação da dignidade, da cidadania, e até de apoio a algo em que acreditamos, mas negamos em nome de interesses, precisa da anuência da sociedade. O silêncio exige um pacto. Aqui a sociedade começa a recobrar sua força!

O papel da sociedade é assegurar que ela não seja vista apenas como um grupo humano que chegou aqui de qualquer modo, ou que pode ser mandado embora em qualquer tempo pelos que se sentem Os Donos do Poder, para lembrar Raymundo Faoro. A sociedade é mais que grupos humanos a quem é concedida uma cidadania fajuta, só com deveres, submissa a chefes locais, sem mecanismos que vigiem os poderes, em nome do povo que lhes concedeu a governança. A nação se faz da ocupação do solo, e por gente, por isso é ideológica, ensinou Milton Santos, com sua força, disposição, caráter. A sociedade que não traça seu próprio destino, não indica por onde quer seguir e não reclama gestão honrada de seus negócios, não se arrisca a perder. Já perdeu!

E com isso, entro na terceira parte do tema: a ética. Em filosofia, ética se distingue de moral porque esta é associada a um conjunto de comportamentos tradicionalmente aceitos por um grupo humano. Por vezes, em nome da moral admitimos certos comportamentos, já que eles são aceitos por razões históricas, políticas ou humanitárias. Por isso mesmo ouvimos falar da moral associada a lugares, religiões ou mesmo a códigos aceitos pelos membros de um grupo. Mas a ética surge da contestação, quando a simbólica de um ato nos atinge, de forma que não conseguimos nos calar. Um teólogo luterano alemão, Dietrich Bonhoeffer, participou da resistência ao nazismo, salvou a vida de muitos judeus e estava nos Estados Unidos quando o regime começou a agonizar em fins de 1943. Voltou à Alemanha e foi preso. Quando o procurador que o acusava descobriu que ele mentiu para salvar judeus, indagou: como o senhor pode mentir, sendo pastor? Ele respondeu: este regime não me merece a verdade! A situação forçou a ética a se sobrepor à moral.

Essa situação me remete ao caso do médico Roger Abdelmassih, filho de libaneses, especialista em reprodução humana e um dos pioneiros na fertilização in vitro no Brasil.E que violentou dezenas de mulheres sob o efeitos de sedativos, ao longo de sua vida profissional. Depois de conseguir driblar processos no Conselho Regional de Medicina e na Justiça, de ter a prisão preventiva decretada e de ficar preso por 4 meses, obteve a revogação da prisão preventiva no dia 23 de dezembro, concedido pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF). No dia seguinte, época de trocar presentes, os dois sumiram. Um escafedeu-se possivelmente para fora do território nacional. E outro para destino certo, sabido e assegurado. O que você sentiria se fosse uma das mulheres violentadas, sob sedativo, pelo médico? Se sentiria protegida pela mais alta instância do Poder Judiciário que trata as vítimas e o ofensores assim? Sentiria que a cidadania é bem vigiada quando um grande veículo de comunicação não volta ao tema, não busca responsáveis e nem reafirma categoricamente que um cidadão – no caso, cidadãs e muitas – não podem ser tratadas desse modo? A ética surge da indignação que você sente agora e é legítima. Mesmo que uma, uma apenas dessas mulheres fosse prostituta, porque esse comportamento não lhe tira a cidadania. Permitir a fuga é aplaudir o erro, sancionar o malfeito e negar com a atitude o Estado Democrático de Direito.

Me inspirando na rica cultura musical brasileira. O desrespeito afrontoso à cidadania foi bem cantado por Zé Geraldo, na música “Cidadão”: Tá vendo aquele edifício moço? / Ajudei a levantar / Foi um tempo de aflição / Eram quatro condução / Duas pra ir, duas pra voltar / Hoje depois dele pronto / Olho pra cima e fico tonto / Mas me chega um cidadão / E me diz desconfiado, tu tá aí admirado / Ou tá querendo roubar?”. À época da ditadura, nenhum veículo de comunicação poderia se referir assim ao regime, até porque o regime de benefício era muito mais amplo que o da Previdência Social, digamos assim. O que nos falta como base de reflexão, de fato, para lidar com o trinômio Sociedade, Violência e Ética, é exatamente a noção de cidadania. Não proteger a cidadania do povo brasileiro é péssimo para o país e sua imagem no exterior, especialmente a percepção que as populações e os governos de outros países têm do nosso. Isso significa que para o cidadão brasileiro poder exigir direitos no exterior, deveria poder fazê-lo plenamente aqui. E ser atendido!

Esse é um diferencial significativo para os países desenvolvidos. Os povos dos países desenvolvidos sabem que os governos existem para garantir-lhes a segurança, o bem-estar e a dignidade. Seus governos sabem disso, até porque foram eleitos para esse fim. Isso significa que zelar pela cidadania segue sendo um alvo a ser perseguido pela sociedade. Talvez, dos poucos, ao lado da educação, que ainda se colocam entre nós e os países ditos desenvolvidos. E para que isso aconteça, é preciso avançar na educação. E talvez haja relação entre a maneira como governos tratam a educação e a dificuldade que têm para lidar com uma população educada, conscientes de seus direitos e deveres, e exigentes. Os salários aprovados para professores mantêm a degradante situação do profissional que ganha apenas 70% de qualquer outro com seu nível de formação. Sei que nossos alunos também se esforçam para obter aqui a formação que precisam para o exercício da profissão que escolheram. Quando trabalhamos juntos perseguindo esse alvo, vamos bem!

Hoje já não quero sabe quem matou Odete Roitman, nem Salomão Hayala e nem Norma Amaral! Não morrem os que só tiveram uma existência fictícia, possível a partir do aluguel de nossa existência real.

Para fugir do mundo da ficção é preciso coragem. Seres anestesiados, vivem quase num coma induzido, em baixa intensidade, com as atividades mínimas indispensáveis às criaturas vivas. Esse tempo não gera memória. E memória é fundamental, pois somente ela, conectada à história, nos permite lutar, dar de nós mesmos, sofrer, viver e amar. Somos seres de linguagem! Isso nos permite protestar, lamentar, sentir saudade – um sentimento que exige amor e ausência, já que não sentimos falta de quem não amamos e nem de quem está conosco – e são desses fiapos de memórias de amor que conseguimos reagir, levantar, sonhar, construir e trabalhar.

E para animar nossas esperanças, concluo esse passeio por nossa cultura, pano de fundo de nossa existência histórica, que nos dá horizontes, com uma frase de Riobaldo, de Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa:

Mulher tão precisada: pobre que não teria o com que para uma caixa-de-fósforo. E ali era um povoado só de papudos e pernósticos. A mulher me viu, da esteira em que estava se jazendo, no pouco chão, olhos dela alumiaram de pavores. Eu tirei da algibeira uma cédula de dinheiro, e falei: – ‘Toma, filha de Cristo, senhora dona: compra um agasalho para esse que vai nascer defendido e são, e que deve de se chamar Riobaldo...’ Digo ao senhor: e foi menino nascendo. Com as lágrimas nos olhos, aquela mulher rebeijou minha mão... Alto eu disse, no me despedir: – ‘Minha Senhora Dona: um menino nasceu – o mundo tornou a começar!...’ – e saí para as luas.

Tenho dito.

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