domingo, 15 de julho de 2012

O feitiço do tempo


Antonio Carlos Ribeiro

O principal entrave para a elaboração de uma teologia das religiões que responda aos anseios deste tempo não é doutrinal, mas surge do estatuto ontológico da teologia diante da mudança na cultura. Uma nova linguagem teológica, uma nova religiosidade, esbarram em dogmas pré-Modernos, têm dificuldades no diálogo ciência-fé, reificam práticas eclesiológicas pré-Modernas  e caem no feitiço do tempo. A análise é de Andrés Torres Queiruga, professor de Filosofia da Universidade de Santiago e um dos teólogos que mais têm se dedicado ao tema. Com uma pesquisa transdisciplinar, cultura teológica e vivência pastoral, e boa dose de humor fino, ele dá as pistas do labirinto, especialmente sofrido para teólogos.


Um dilema trazido pela mudança da cultura para a teologia é a necessidade de “levar a sério a absoluta primazia do Deus que nos criou e continua nos criando por amor; única e exclusivamente por amor” (p. 16). Enfatiza que Deus está sempre entre os seres humanos, conquanto essa elementar perspectiva não seja plenamente assumida pelo mundo religioso, em que o ser humano ainda é obrigado a lutar por sua salvação. Essa situação denuncia um desajuste profundo entre o sentido da experiência fundante, o da práxis e da sua elaboração teológica, tolerável até o início da  Modernidade, mas insuportável no século XXI. Isso exige nova relação.

A Modernidade impõe uma mudança radical de paradigma, cuja principal marca é a progressiva autonomia alcançada nas realidades física, social, econômica e política. O impacto leva à derrocada de verdades que reinaram absolutas por séculos, como a de que Deus determinou riqueza e pobreza ou que o mal interfira nas moções do consciente e inconsciente humano. Esse processo, que avançou de forma legítima e irreversível, provocou uma reação eclesiástica e teológica conservadora de um lado, e uma crítica
secularista e ateia de outro. A sequência de fatos foi desfazendo mal-entendidos e propiciando diálogos autênticos e frutíferos.

A nova objetividade religiosa não extirpou a impregnação mitológica que marcou a teologia desde os primórdios. A autonomia do mundo era tão rejeitada que nada indicava sua irreversibilidade, conquanto hoje pareça impensável que alguém tenha crido que os astros são movidos por anjos, as enfermidades provocadas por demônios, ou que Deus tenha ordenado as chuvas. Bultmann distinguiu o pensamento mitológico intervencionista daquele em que a ação de Deus não tem lugar nos acontecimentos, mas em seu interior. Por isso nunca negou o valor existencial das intenções profundas, veiculadas nas expressões
míticas.

A forma de relacionar transcendência e imanência é ver esta como espaço de máxima realização daquela. Isso se choca com o deísmo puro, no qual deus se desentende com sua criação e dela se afasta; e o deísmo intervencionista, consequência natural de sua permanência no céu, para onde o ser humano precisa se aproximar pelo rito, a oferenda ou o sacrifício. Diante da iniciativa humana, ele intervém, atendendo. O verdadeiro infinito é aquele que se relaciona sem se contrapor ao finito. Se o fizesse, adquiriria sua limitação
pela contradição. Mas faz que o finito tenha sua verdade no infinito.

A Modernidade propiciou a reflexão sobre não dualismo e o não intervencionismo na criação, movida pelo amor que não exige nada em troca, mas no Deus que cria para servir e não para ser servido, como Jesus. Desse fato surge a ruptura do dualismo natural-sobrenatural  e sagrado-profano. O intervencionismo é desnecessário, já que ele está neste mundo e  sempre trabalha. A tentação à passividade ou à resistência é humana. Oração é  gratuidade porque ele trabalha sempre por nós. Não há o que pedir, já que a falha acontece sempre do nosso lado.

 A teologia da criação-salvação tem como parâmetro a convicção radical de que tudo que vem de Deus só é interpretado legitimamente se tem um sentido positivo e libertador. A salvação precisa ser liberta dos esquemas de sacrifício, preço e castigo para reconhecer a criação, a natureza e o real, ao qual ele não ameaça, mas potencializa. Se sua atuação fosse rebaixada ao nível das causas intramundanas, Deus seria um ídolo, e insensível, por não ter evitado o sofrimento nem curado a todos.

A nova subjetividade religiosa tem a marca da teonomia como razão unida à sua profundidade. Com a subjetividade autônoma, superando a ingenuidade, a credulidade ou a superstição, que pode comprometer a convicção de quem crê, surge nova revelação. A transcendência não obriga Deus a romper a autonomia do sujeito para se anunciar em sua imanência porque ele já está dentro, iluminando a subjetividade e se  manifestando. O positivismo da revelação pode ser superado e dar lugar à maiêutica histórica. Isso dá caráter de busca à leitura bíblica, no processo que  Juan Luis  Segundo chamou de  aprender a aprender.

Após essa caminhada, o limiar do novo paradigma, a ser construído. Queiruga insiste em não comparar um paradigma com outro, para evitar a perversão. O paradigma intervencionista implica afirmar a legitimidade das religiões e de todo autêntico conhecimento religioso e, ao mesmo tempo, punir, a partir de uma leitura literalista.

Misturar elementos de paradigmas diferentes faz da teologia um amontoado de arrazoados. Diante do extra Ecclesiam nulla salus, de um paradigma, Schillebeeckx reagiu dizendo que “fora do mundo não há salvação”.

Cabe fazer alianças com os setores da cultura que buscam o verdadeiramente humano. A Igreja não precisa renunciar à identidade, mas reconhecer que não tem o monopólio, deixando-se evangelizar pelos valores da criação e auscultar os sinais dos tempos. Ao repensar a teologia, o risco é construir teologias prontas, atualizando o vocabulário, mudando os nomes dos adversarios e deixando intactos os esquemas e manuais
pré-conciliares, ao invés de repensar tudo a partir de referenciais com significatividade efetiva.

A fidelidade busca a vontade de Deus e a apaixonada presença do Evangelho no mundo, que se sente mais confortável com credos do que com religião, está mais familiarizado com a Igreja do que com Cristo, mais comprometido com a caridade do que com a justiça, mais involucrado na opressão do que na igualdade, mais dedicado a manter a fé dos nossos pais prescrevendo os pronomes femininos dos textos sagrados do que a libertar o ímpeto da Boa Nova (p. 65).

A passagem da  Pré-Modernidade  para a  Modernidade  acarreta a mudança na linguagem, como no conflito entre a orientação para rezar, dada aos fiéis cristãos diante do problema da seca, e o dado dos meios de comunicação sobre as altas pressões do anticiclone. A insistência no conflito converte Deus num ídolo, cuja  “imagem se esfrangalha sob os golpes da picareta positivista” (p. 73). A linguagem implica sempre muito mais do que diz explicitamente (Wittgenstein), somando até o que não foi dito ao pensamento. A consciência infeliz (Deus fora, distante e acima) é a consequência inevitável desse novo momento, elaborada por Nicolau de Cusa (o distinto carece do que é distinto, o não distinto não carece de nada), que gera a ruptura dos dualismos.

A mudança cultural é consequência da mudança de paradigma. Há quem repita conceitos da Pré-Modernidade, desavisadamente, sem a menor cerimônia, não apenas em eventos paroquiais. Observa que mesmo teólogos como Barth e Von Balthasar, ícones das tradições protestante e católica, ainda se referiram ao deus que exigiu a morte de seu filho para nos perdoar os pecados ou que descarregou sobre ele a ira reservada a nós, metaforizando que os diques já cederam à pressão da enchente e os “remendos provisórios
são incapazes de conter a hemorragia de sentido” (p. 83), tornando o transbordamento e a catástrofe – a tomada de consciência da mudança de paradigma na linguagem – inadiáveis.

A mudança já sofre os efeitos da interpenetração de culturas, que se agrava quando não é percebida  naturalmente, mas apenas sob o efeito de choques pleonasticamente chamados culturais. A compreensão do significado não se dá em estado puro, mas apenas em referenciais culturais. A interpretação de cada época requer modéstia para superar o caráter de único ou definitivo e, ao mesmo tempo, liberdade. Apesar disso,  “talvez, ao longo da história humana, nenhuma outra religião teve a mesma ousadia nem assumiu um
risco semelhante” (p. 89).

Isso foi possível por causa dos recursos da exegese e da ousadia que colocou a teologia cristã na idade hermenêutica. Por essas brechas foram abertos campos inéditos, ampliados os espaços do  intellectus fidei e criadas as condições para as teologias da esperança,  da política e da libertação, com o aproveitamento dos meios oferecidos pela análise social. A dificuldade surgiu dos temas que envolvem a comodidade de grupos humanos em conflito com a necessidade de abordá-los, relegando-os a motivos de oração pelas tragédias e possibilitando o desencargo de consciência e o alívio.

Nas comunidades urbanas de classe média convencionou-se pedir sem pretender, informando a urgência e influindo na visão do fiel. Recurso devocional, isso possibilitou a entrega Pré-Moderna do problema a Deus e o retorno Moderno à comodidade sem culpa.

Isso não deixa Deus ser Deus, bradaria Lutero, acima de nossos limites, amarrando-o à Pré-Modernidade, sempre disponível aos nossos desejos. O desafio é aceitá-lo em sua verdade, em vez de nos queixarmos pedindo.

A nova religiosidade e  a  experiência cristã denotam uma insatisfação unânime e generalizada, que expressa o desconforto com as formas da religião herdada ou o seu abandono. Isso pede a análise dos condicionamentos profundos, por causa da inculturação da Pós-Modernidade nos velhos esquemas, com o ressentimento do fato de não ter havido uma só descoberta científica importante que não tenha sido condenada ou olhada com desconfiança na Modernidade, como observou Walter Kasper.

O preço a ser pago na nova religiosidade é o de que Deus possa ser tudo, como propôs Feuerbach ao elaborar uma antropologização radical. Marx a liberou do individualismo, mas acabou numa “quase religião”. Freud completou a reação com a dimensão psicológica, que abria o ser humano a profundezas abissais, chamados  novos continentes por Althusser, dado o impacto na antropologia da  Pré-Modernidade. Daí a descrição da profunda crise do Ocidente após o Iluminismo (Adorno e Horkeimer).

Entre as reações, a polarizada, diante do otimismo moderno, à renúncia à utopia e à esperança de renovar o mundo (negativas); e a expansiva, com a revalorização do pequeno, a tolerância com o diferente, a desabsolutização do estabelecido, o novo apreço pelo corpo, a revitalização da experiência (no individual), além de uma universalidade em harmonia com a natureza, uma nova aliança com o cosmo e uma fraternidade acima dos credos e dos imperialismos. A presença do sagrado, que se tornou também elusiva, arredia e contrastada em Nietzsche, deve buscar uma nova transcendência, como na discussão entre Benjamin e Horkheimer diante da história carregada da vitimização irremissível, quando só a resposta teológica pode dar “a nostalgia de que o verdugo não triunfe sobre sua vítima” (p. 114).

Na Pós-Modernidade, com as situações mais complicadas e mais explícitas, Vattimo percebe com clareza, mas guarda certa distância da resposta institucional. Seguindo o exemplo de seu fundador, a resposta cristã deve acolher o genuíno, integrá-lo e enriquecer seu projeto, saindo de uma postura apologética para a criatividade histórica. Se a Modernidade  está em elaboração, a  Pós-Modernidade  continua imersa em névoas. A fé cristã implica a existência de cristãos Pós-Modernos. A agudeza da diferença entre as eras fez passar o tempo dos ajustes, obrigando a reflexão sobre  a mudança de paradigma. A nova síntese parte da intuição de que Deus cria por amor, sendo tudo em todos, fazendo-nos verdadeiramente humanos, filhos e filhas, e amadurecidos em Cristo, para atender às demandas da nova sensibilidade.

Esses elementos possibilitarão superar as principais deformações da cultura ocidental: o desequilíbrio homem/cosmo e o dualismo sagrado/profano. Com a criação toda boa, fica claro que Deus não criou homens e mulheres religiosos, mas apenas humanos, indicando ser esta a maneira de ser religioso. Essa insatisfeita resposta institucionalizada gerou também a resposta mais difusa, fora das fronteiras (do credo, da Igreja), e muitas vezes é vivida como não religiosa.

Somente quem  “sabe de memória” o Mistério, porque o aprisionou na letra morta das fórmulas, pode se fechar à livre manifestação do Espírito, que  “sopra onde quer” (Jo 3,8). Quem, na verdade, toma a letra como uma verdadeira  “maiêutica”, que o chama ao reconhecimento vivo e à expressão balbuciante dessas profundezas que só o Espírito conhece (1Cor 2,9-16), compreende que toda a palavra, por mais distante e estranha que ressoe, pode tomar parte do “gemido da criação” em busca da plenitude comum (Rm 8,22) (p. 134).

Conquanto clara a relação, no tema da infalibilidade, o teólogo galego discutiu as origens do dogma, mostrou o enraizamento de posições no campo popular e os desdobramentos que resultaram no culto ao papa e seu efeito histórico sobre o inconsciente teológico e a história humana. Mesmo atribuindo o sentido de indefectibilidade, associada à necessária força do Magistério da Igreja, da norma que julgue seu meio e o caráter frágil da experiência religiosa, contraditoriamente, são os meios pelos quais pode existir. No caso protestante, há instrumentos jurídicos semelhantes, mormente usados em momentos definidos contra teólogos(as) no afã de arrebatar-lhes o carisma. Os arrazoados colocaram a questão e suas implicações, sem alternativas claras.

O diálogo ciência-fé mostrou contornos próprios na atualidade, oriundos da tensão Pré-Modernidade-Modernidade-Pós-Modernidade. Alguns são prototípicos e envolvem teólogos conhecidos. Como faz Queiruga muitas vezes, deve-se agradecer que os ataques ao movimento de translação  tenham atingido apenas teorias e teóricos, sem danos permanentes ao cosmo! O impacto vem da constatação de que o religioso é autenticamente humano, bem como sua resposta na relação com Deus, já que esta não é um meteorito caído do céu, mas resulta da experiência humana com Deus, antropologia que devemos a Rahner.

Ser cristão Pré-Moderno na crise causada pela mudança radical da Modernidade é a temática trabalhada no livro. A tarefa mais imperativa e urgente é repensar a fé, transformando as categorias para a atual cosmovisão. Não é indolor e muito menos sem custos, como mostra a história. A nostalgia que amarra ao passado mumifica, tentar salvar o tesouro do porão durante o naufrágio compromete a vida, assim como a teologia que se constrói em pressupostos inconscientes e crenças incontroladas. Assim, deve-se viver na fé em Deus que luta conosco e nos sustenta com a esperança de que, vencidos os limites da história,  ele  vencerá ao resgatar as vítimas; e ter coragem para mudar e renovar, na confiança de que muda a roupagem, mas o fundamental permanece. Se isso não acontecer, as  Igrejas  se autoexcluirão do tempo (ana-chronos), e os membros que as compõem perderão a inédita possibilidade de amar e trabalharão pelo futuro que aprendeu a humildade da história.

O título sugere outros semelhantes, que se ocuparam em definir (dar fim a) a Modernidade, talvez na esperança de que a essa interpenetração cultural,  incrustada e cristalizada na expressão religiosa, comece logo a ceder.

Publicado em Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano VIII, n. 39, p. 86-91

Um comentário:

rose disse...

Adorei, Antonio!!!

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