O livro de poemas (Da cruz ao cais; poemas. Rio de Janeiro: [e.a.], 2012) de Roberto Britto, como gosta de ser chamado, é a um só tempo, catártico e iconoclástico. A primeira característica surge já no título, dando a marca autobiográfica de sua expressão poética, que ele entende tardia, como se houvesse chronos, noção grega do tempo marcado para cada atividade, que não apenas o ditado pela condição existencial de quem viveu bastante tempo aión, noção hebraica de tempo longo, justo para quem tem neste poema o kairós, o tempo oportuno do fruto maduro, quando se pode avaliá-lo.
A iconoclastia, a segunda, resulta da mesma atitude, agora aplicada à vocação que abraçou, à carreira acadêmica, pastoral e terapêutica que construiu, sobre a qual agora decidiu expor seus sentimentos, emoções e pulsões, como parte do ‘rescaldo’ septuagenário que começou.
O texto auto-expositivo de Britto faz desfilar hinos e poemas, desabafos e palavrões – de poucas sílabas – que o marcaram, situando-os no tempo e no espaço. Animou-se com Fernando Pessoa, a “desencaixotar minhas emoções verdadeiras”, confirmando que ninguém passa incólume pelas páginas do poeta português.
De Gonçalo Tavares, assumiu a capacidade de viver a vida, mas não sem pensá-la, usando a métrica, dispondo-se a lembrar a ‘seriedade de momentos constitutivos’, chegando à condição de ‘tirar seriedade aos atos da vida’. E com Manoel de Barros, se dispôs a ‘escutar a cor dos passarinhos’ e a delirar com as novas conquistas, próprias de quem ‘houve-se’ com o tempo e aprendeu que o ‘verbo tem que pegar delírios'.
Como em um labirinto, em que descobrir o código é fundamental para poder se libertar, ele reza para se libertar do poder codificador das palavras do hino ‘sou um infantil’, até poder colocá-las a seu serviço.
Na experiência com o texto sagrado (Bíblia) passeou com o Fiat verbum, Fiat alma, Fiat babel e Fiat idioleto, como chaves a lidar com os temas cotidianos, fez conexões pessoais – em que o anel de bacharel, que se tornou aliança de casamento, do anel do doutorado em Teologia nos EUA, e da aliança que tirou do dedo após 30 anos – falando de sabores, cheiros, texturas e cores.
Anda pelo cotidiano com os olhos abertos, ouvidos e nariz sensíveis, entrega-se aos prazeres triviais. Descobre a cozinha, passando-a do espaço de comer em família para o de ‘ousar’ na culinária. Datou os momentos importantes: do nascimento ao presente, lembrando a infância, a formação, o trabalho eclesial, o casamento e os filhos, o afastamento, e os temas vindos da mídia e embebidos na percepção e na linguagem liberta para a qual criou o tempo, já que agora é dele senhor!
Dá impressão de se deixar seduzir pelo cotidiano, chega ao cais. O mesmo que é de chegada e de partida, como lembrou Milton Nascimento. Lugar de possibilidades, dos acessos, inclusive a si próprio e aos leitores a quem alcançar.
O pastor superou-se, conseguiu enamorar-se do mistério e conquistar o direito de aproximar-se e afastar-se. O professor condensou aprendizados, sem jogar fora os anos de cátedra de pastoral, nem as gerações de pastores e teólogos em cuja formação contribuiu. E o terapeuta, que coroa a caminhada, e através do qual se defrontou com o próprio retrato. Sem retoques. E tornado público.
Recomendo a leitura. A mim fez muito bem, permito-me assumir. Mas tem pré-requisitos: afastar-se de uma postura moralista, saber lidar com linguagens diversas, inclusive as do corpo e do inconsciente – que não se traem nunca – e perceber, com Christian Andersen, que o rei está nu, e que nesta condição, todos nós lidamos com nossos limites, primeiros e últimos.
O risco é humanizar-se!
2 comentários:
REVALIDAÇÃO DE DADOS CADASTRAIS
ATESTO aos leitores eventuais
que alterei meus dados cadastrais
e renovei minhas identidades funcionais:
saí da cruz, em direção ao cais,
tanto o Absoluto
como alguns tão usuais,
para ser outras pessoas:
eu quero mais!
Isso é uma reação rápida. E literária! abç
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