Reverendo James Wright, da Igreja Presbiteriana Unida
O líder ecumênico Jether Pereira Ramalho, à época editor da revista Tempo e Presença, do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), hoje Koinonia, costuma dizer que a comunhão de forças entre católicos e evangélicos para salvar vidas durante a ditadura resultou no avanço do ecumenismo no Brasil.
A articulação feita pelo Cardeal Arns, especialmente pela tortura ensandecida que se abateu sobre centenas de religiosos na década seguinte a 1968, resultou numa reunião promovida com religiosos do exterior, com o objetivo de reunir apoio internacional e ajudar a mostrar a insatisfação nas ruas.
Após o encontro, o encarregado de direitos humanos do CMI, Charles Harper, informou sobre a "crescente tensão entre a Igreja e as autoridades" e o ato que reuniu 6 mil pessoas na Igreja da Penha, em São Paulo, para debater as denúncias e alternativas de reação à repressão estatal. Esta "foi a primeira vez que uma articulação tão lúcida, sob a iniciativa da Igreja no Brasil, foi feita desde 1964 em relação aos direitos humanos". E referiu-se à invasão da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, da qual Arns era o Grão-Chanceler, com apreensão de uma tonelada de "material e equipamento subversivo" e a prisão de 1,5 mil alunos. A ostentação de força e truculência logo foi vista como "uma retaliação contra a Igreja", apesar do controle da mídia.
A Igreja Católica, vista como aliada de primeira hora do Golpe de Estado, teve 9 bispos, 84 sacerdotes, 13 seminaristas e 6 freiras, além de 273 agentes de pastoral presos, dos quais 34 sofreram tortura com choque elétrico, paus de arara e ameaças psicológicas na década. Entre os quase 400 presos, houve pessoas com lesões físicas e psicológicas permanentes. Como esse número se multiplicava às dezenas pela população e sem a mídia, ideologicamente atrelada ao regime, viu-se a necessidade de denúncia ao exterior.
Os cidadãos que eram religiosos ou ligados às Igrejas foram presos por proferirem homilias e pregações que denunciavam crimes e organizavam manifestações operárias que irritavam os militares. Como reação às igrejas, havia registros de sete pessoas mortas – entre as 18 ameaçadas – presas como "subversivas" ou suspeitas de passar informações a dissidentes. Os órgãos de repressão intimaram 75 líderes para depor, exigindo a denúncia de bispos e sacerdotes.
A atuação do arcebispo de São Paulo conquistou apoio internacional. Levantou recursos para manutenção de frentes de atendimento aos perseguidos políticos, teve encontros com líderes no exterior, alertou sobre as violações aos direitos humanos no Brasil, criou redes de contatos, financiadores de projetos e apoiadores das denúncias de crimes contra a população, especialmente no período de maior decadência e truculência do regime.
Esses fatos geraram a produção de relatórios, testemunhos, cartas, informações de dissidentes e depoimento de dezenas de acusados, que integraram as três caixas de documentos repatriados e encaminhados à Procuradoria Geral da República, no dia 14 de junho. O estudo desse material integra a defesa do país diante da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Comissão Internacional de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), que condenou o país após o Supremo Tribunal Federal (STF) ter arquivado ação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
A fúria sobre o Cardeal Arns - considerado alguém de "coragem, firmeza e sentido de timing" e por isso diversas vezes ameaçado – eram atenuados por movimentos de liberalização do regime ao tempo que mostravam a hesitação dos militares, temerosos de terem de responder pela violência e pela corrupção. Nessas ocasiões a violência recrudescia.
Em 1979, após a invasão da PUC, Arns estreitou relações com o pastor Philip Potter, Secretário Geral do CMI, e pediu recursos financeiros – que não poderiam vir de forma legal, para não sofrerem confisco – para o projeto Brasil: Nunca Mais, utilizados na publicação do livro homônimo em 1985. A pesquisa revelou os nomes de 444 torturadores, de 242 centros de tortura no Brasil e os testemunhos de milhares de vítimas, mapeando a repressão no país.
Um grupo de advogados, coordenados por Arns e Wright, aproveitaram o acesso concedido por 24 horas aos processos dos tribunais e dossiês, para fundamentar a proposta da Lei de Anistia, coletando 1 milhão de páginas, que enviaram para o CMI e pelas quais detalharam os 15 anos da repressão no país em centenas de dossiês.
Arns insistiu que "as igrejas precisam tomar a iniciativa de garantir que, pela publicação desse material, tais coisas não ocorressem de novo", pedindo que "o Conselho Mundial de Igrejas aceitasse a tarefa de levantar a grande maioria dos fundos necessários”, no valor de 329 mil dólares, e “de uma forma confidencial". A resposta de Potter, que chegou quase um ano depois, dizia que tinha conseguido "levantar a maior parte dos recursos necessários à realização do projeto especial", que era uma doação às "famílias dos operários em greve no ABC" e que a pesquisa sobre a tortura seria divulgada nas igrejas "em todo o mundo".
Os processos eram copiados, enviados para São Paulo, transformados em microfilmes e mandados para Genebra. O portador que levava as informações à Suíça, voltava ao Brasil com dinheiro para o projeto. Arns informou a Potter que o dinheiro "estava sendo gasto estritamente de acordo com os planos aprovados". Da tarefa executada por Arns e Wright surgiu uma forte amizade.
Quando Wright faleceu em 1999, o Cardeal enviou uma mensagem através do Provincial dos Franciscanos em Vitória, com condolências à família e a lembrança da vida dedicada à guarda da memória. Os protestantes elogiaram D. Paulo Evaristo Arns por ter dado apoio moral e espaço físico a quem lutou contra a ditadura, inclusive dentro da Igreja, e foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz, mas o governo brasileiro atuou nos bastidores contra a proposta.
Ao viajar a Roma com D. Aloísio Lorscheider, outro cardeal franciscano, para defender Leonardo Boff, Arns também irritou o Cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Boff ficou calado por quase um ano e ele viu a Arquidiocese de São Paulo ser dividida em quatro, meses depois.
Mas nunca traiu a memória dos mártires. Por isso, foi aplaudido duas vezes na repatriação dos documentos.