segunda-feira, 2 de maio de 2011

Graça barata é desgraça

Antonio Carlos Ribeiro


Nós temos sido testemunhas silenciosas de ações más; nós temos sido
encharcados por muitas tempestades; nós temos aprendido as artes da
equivocação e do fingimento; experiência que nos tem feito desconfiados
dos outros e nos têm impedido de ser verdadeiros e abertos: conflitos
intoleráveis nos têm desgastado e até mesmo nos feito cínicos.
Dietrich Bonhoeffer (*04.02.1906 – +09.04.1945)

O dia 9 de abril passado tem o gosto amargo de uma perda. Lembra a execução do teólogo luterano alemão Dietrich Bonhoeffer. Assim como o dia 4 de fevereiro, seu nascimento, traz o doce sabor da lembrança de uma vida com significado.




Na primeira lembramos o nascimento de um homem de fé, teólogo inteligente na sociedade, pastor que denunciou a acomodação da igreja no regime nazista e militante que formou teólogos no Seminário de Finkenwald e salvou judeus atuando no Serviço de Inteligência do 3º Reich. Na segunda, lamentamos a existência de um regime desumano, poderosamente abalado – no ápice da sua decadência – pela força de um testemunho.

Com a primeira, damos graças a Deus pela vida deste profeta moderno que, como João Batista, foi uma voz no deserto. Com a segunda, maldizemos a violência, especialmente a bestial, articulada com o poder estatal e disposta a silenciar os opositores.

O mundo moderno aprendeu a gostar do teólogo luterano que participou da conspiração da resistência que planejou o atentado contra Adolf Hitler. Tinha clareza de raciocínio e piedade, era jovem, brilhante, ecumênico, foi pastor na Espanha, residiu em Londres, estudou no Union, em Nova Iorque, atuou no Seminário de Finkenwald e na Igreja Confessante, e escreveu um clássico da mística moderna: O preço do discipulado (Nachfolge, em alemão).

A subserviência da Igreja Evangélica Alemã ao Regime Nazista o chocou de tal modo que o fez cunhar a expressão graça barata. Bonhoeffer se tornou a referência ao falar de ser-igreja-para-os-outros, não sucumbir diante do terror e nem se calar diante do genocídio.

Em 4 de fevereiro de 2006 a Igreja Evangélica na Alemanha (IEA) lembrou os 100 anos desta data com celebrações em Wroclaw, Berlim e Londres. As alocuções foram proferidas pelo Bispo Presidente do Conselho da IEA, Wolfgang Huber, pelo Arcebispo de Canterbury, Rowan Williams, e pelo Bispo Luterano de Breslau, Ryszard Bogusz.

No mesmo dia houve uma celebração ecumênica vespertina em Berlim, com a presença destas autoridades, seguida de um ato festivo na Faculdade de Teologia da Universidade Humboldt. Margot Kässmann, à época bispa da Igreja de Hannover, representou o Conselho da IEA no culto memorial organizado pela Igreja Anglicana e realizado dia 5 de fevereiro na Abadia de Westminster.

Ele era filho de um médico e professor de psiquiatria notável, nasceu em Breslau, Prússia (agora Wroclaw, Polônia). Recebeu sua educação teológica nas universidades de Tübingen e Berlim (doutorado). Serviu como pastor assistente numa congregação de língua alemã em Barcelona, Espanha (1928-1929), estudou no Union e tornou-se professor de teologia em Berlim no outono de 1931.

Crítico intransigente de Adolf Hitler e do regime nazista em sua ascensão ao poder em 1933, juntou-se à Igreja Confessante. Passou dois anos (1933-1935) como pastor de congregações de língua alemã em Londres, retornando à Alemanha como diretor do Seminário da Igreja Confessante em Finkenwald, Pomerânia. Após o começo da Segunda Guerra Mundial, uniu-se à resistência a Hitler, sendo preso em abril de 1943 em Berlim e executado no Campo de Concentração de Flossenbürg em 9 de abril de 1945.

Bonhoeffer é importante por causa dos seus esforços para o ecumenismo, a paz mundial e a convicção da necessidade de reinterpretar o Cristianismo para o mundo secular moderno. Seus livros mais conhecidos são Discipulado, Tentação, Vida em Comunhão e Resistência e Submissão, com as cartas e documentos da prisão.


Metaxas acrescenta o adjetivo espião

Esse era o perfil que o tornava intrigante aos olhos do público teológico. Quando se pensava conhecer o básico sobre uma vida cheia de significado desse homem de fé, teólogo agudo e militante ousado, que enfrentou um regime desumano, eis que surge a obra de Eric Metaxas (Bonhoeffer: Pastor, Martyr, Prophet, Spy. Nashville: Thomas Nelson, 2010) acrescentando aos honoráveis títulos de pastor, mártir e profeta, o de espião.

Isso não abala os traços da vida deste profeta moderno que discordou da igreja do Reich, mas acrescenta certo tempero, sobretudo numa América Latina que ainda lida com violência política, mantida pelo poder estatal e disposta a silenciar os opositores de regimes conservadores e criminosos.

O autor se mostra alegre com a boa crítica, mas sobretudo pelo apoio do mercado editorial e à recepção no público, apesar do volume de texto da obra. Com motivação pessoal, tempo para dedicar à pesquisa e amor pela tarefa de biografar, Metaxas fala da determinação, do empenho e do prazer com que se dedicou à tarefa, informando que foi o período de esforço mais concentrado que já fez, atitude que lembra o depoimento de Umberto Eco em O Nome da Rosa: pós-escrito e, sem falso moralismo, admitindo que desejou que sua obra fosse definitiva.

Também admitiu sua paixão pelo perfil do biografado. “Ele é a pessoa mais autêntica que eu já encontrei, e eu sei que a sua vida fala poderosamente a nós de inúmeras maneiras. Ele é como o herói supremo, e sua história é tão inspiradora que eu tinha que contá-la a uma nova geração de leitores”.

Imagine como essa motivação o fez voltar mais de 70 anos, revolver documentos como cartas, anotações, artigos e livros, inclusive o inconcluso Ética, além das cartas de amor enviadas à noiva (Love Letters from Cell 92), escritas no momento derradeiro, nos primeiros meses de 1945.

Esse herói vive em meio ao estresse de um regime absolutista e já em crise, movimenta-se numa igreja que lhe vira as costas e intelectuais que não apoiam os riscos últimos de seus envolvimentos, como Karl Barth. Ao mesmo tempo, Bonhoeffer tem convicções de fé que o impulsionam mar adentro, mesmo com a maré perigosa, que o faz manter a sensibilidade e a ternura, ao lado da disposição de assumir seus postulados.
"Não qualquer um, mas aquele direito faz e ousa, não paira no possível mas se agarra corajosamente à realidade", era seu lema.

O herói cristão da resistência ao nazismo parece que vai saltar das páginas desta obra, sobretudo quando traduzida ao espanhol e ao português, por causa da humanidade que o teólogo nunca abandonou em meio ao turbilhão de fatos de impacto mundial em que se movimentou.


A propósito, segundo o autor, sua obra “o humaniza muito e mostra que tipo de pessoa era. Ele surge como alguém acessível, encantador e gracioso, o tipo de pessoa com quem qualquer um adoraria passar o tempo”. Mais: aquilo sobre o que se tinha algumas informações, como seu trabalho na inteligência militar alemã, a Abwehr, onde obteve informações para salvar a vida de judeus, constitui o elemento que a biografia destaca.

O outro traço é o perfil de militante, extremamente autodisciplinado, crítico, exigente e eventualmente impaciente. Isso explica opções teológicas firmes – como o raciocínio de que o menino não errou ao mentir para o professor que queria ridicularizá-lo ao falar da bebedeira do pai – e opções éticas drásticas – quando explicou, ao ser preso, que a tarefa do pastor diante do louco que dirige de forma desgovernada um caminhão, provocando acidentes e mortes, não é apenas sepultar os mortos e consolar os enlutados, mas arrancar-lhe o volante das mãos.

2 comentários:

Passos disse...

Agradeço a biografia sintética de Bonhoeffer a quem encontrei por sua obra "Resistência e Submissão" há muitos anos e é inspiração de comprometimento militante. Prof. Luiz A. Passos/UFMT

rose disse...

Super grata, Antonio por este trabalho, excelente, muito bom ver de perto essa trajetória com tanta HUMANIDADE, que só pode ser de Deus mesmo!

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