Jornalistas experientes e responsáveis deveriam publicar
- como fizeram os da Veja - repercutir e divulgar boato de
criminoso condenado - como os da Globo, Folha e Estado?
criminoso condenado - como os da Globo, Folha e Estado?
Sylvia Debossan Moretzsohn*
A tentativa de influenciar o voto dos eleitores indecisos, e mesmo de reverter a decisão de quem já havia feito sua escolha, através da produção de um bombástico factoide de última hora, já foi suficientemente analisada por Luciano Martins Costa em seus mais recentes artigos neste Observatório (ver aqui e aqui). Mas a última edição da revista Veja teve, além de tudo, o poder de ressuscitar a famosa metáfora do mensageiro, através da qual os jornalistas costumam isentar-se de responsabilidade pelo que divulgam.
Foi exatamente este o argumento utilizado pela revista, ao responder à contundente manifestação da presidente Dilma Rousseff, então candidata à reeleição, em seu último programa eleitoral, no qual acusava a publicação de haver cometido um crime (ver aqui). Foi também este o argumento disseminado em comentários nas mídias sociais.
Desmontar essa falácia é uma providência fundamental para esclarecer o papel, a relevância e as responsabilidades do jornalismo.
O jornalista, um mediador
Há alguns anos, o jornalista português José Vitor Malheiros, no Público, ofereceu uma excelente síntese para esse esclarecimento:
Os jornalistas não são mensageiros porque o seu papel não consiste em transportar de um lugar para outro – das folhas de um processo para as páginas de um jornal, por exemplo – uma dada mensagem. Um jornalista não é um estafeta reduzido a um papel de mero transporte, nem um pé de microfone. (...) os jornalistas, sendo mediadores porque estabelecem uma mediação entre leitores e sociedade, são produtores de informação e possuem o dever de escolher, filtrar e validar as notícias que dão – a partir da informação que recolhem activamente ou que recebem passivamente – e até de traduzir, descodificar, explicar, enquadrar ou mesmo comentar as notícias que o exijam. São os autores das notícias.
Como se vê, o trabalho do mediador tampouco implica neutralidade: exige critério para filtrar, no meio do turbilhão de informações, aquilo que tem credibilidade, substância e relevância para ser publicado. Exige fazer escolhas, como é próprio da atividade jornalística.
Um mentiroso como fonte
Ancorado no que pejorativamente passou a ser conhecido como jornalismo declaratório, o denuncismo já foi objeto de inúmeras críticas. Baseia-se nisso que certa vez chamei de “jornalismo de mãos limpas”: alguém faz uma denúncia, a imprensa publica; o denunciado protesta, a imprensa publica. Bastaria, portanto, referir as informações – verdadeiras ou falsas, pouco importa – às fontes, e lavar as mãos: quem as divulga não teria nada a ver com isso.
É um raciocínio que não resiste à mínima reflexão: para dar um exemplo extremo, concordar com ele é aceitar que a imprensa se comportou de maneira perfeitamente ética no caso Escola Base.
No que diz respeito às denúncias de Veja, (in)devidamente antecipadas no site do Globo na base do condicional – o doleiro “teria dito”, a revelação “teria sido feita” etc – e depois reproduzidas nos dois principais jornais paulistas, há outro aspecto a ser considerado: as acusações teriam decorrido de um acordo de delação premiada, pelo qual o preso se compromete a dizer a verdade, ou não obtém o benefício almejado. Logo, parte-se singelamente do pressuposto de que ele não mentiria. Por que aguardar a apresentação de provas, então?
Em sua coluna de 26/10, na Folha de S.Paulo, Janio de Freitas fornece um perfil do denunciante:
Dado apenas como doleiro, Alberto Youssef é mentiroso profissional. E seu negócio são importações mentirosas para exportar dólares como pagamentos. Sua atual busca de delação premiada, em troca de liberdade apesar de criminoso confesso e comprovado, não é a primeira. Voltou a ser preso, há seis meses, porque, desfrutando de liberdade concedida pela Justiça como prêmio por antigas delações, dedicou-se aos mesmos crimes que se comprometera a não repetir. A delação premiada e o acordo com um juiz foram ambos mentirosos.
Seria aceitável confiar numa fonte como esta? Mais ainda: seria lícito servir de porta-voz desse tipo de fonte e divulgar acusações de tamanha gravidade às vésperas de um momento decisivo para a vida política do país?
A tarefa de asseverar
Previsivelmente, a tendência de uma parcela do público não é indagar as intenções da revista, mas acolher as denúncias, porque “é evidente” que Lula e Dilma sabiam de tudo: o senso comum funciona precisamente no sentido contrário ao dos postulados do direito e se baseia na presunção de culpa.
Não seria demais assinalar, entretanto, que, se “é evidente”, nem haveria necessidade de investigação judicial. O mais grave, porém, é ignorar que casos de corrupção costumam ter ramificações importantes, embora as denúncias sejam sempre seletivas e, desta forma, publicadas com o objetivo de atingir determinados alvos, deixando outros envolvidos à sombra.
Tudo isso, claro, sempre em nome da “liberdade de expressão”, cujo abuso, uma vez contestado, é sempre condenado como tentativa de imposição de censura.
Num livro publicado originalmente há 20 anos (Pragmática do jornalismo, Summus), o professor Manuel Carlos Chaparro afirma que o ato de fala próprio do jornalismo é o de “asseverar”. Mais ou menos pela mesma época, o economista João Sayad escreveu breves mas preciosas “Notas sobre a imprensa” na Folha de S.Paulo (12/2/1993), em que comentava os métodos usuais na cobertura de economia:
Andam dizendo que tal instituição vai quebrar. Sim, é verdade, andam dizendo aquilo. Mas será verdade o que andam dizendo? Ou é verdade que andam dizendo mentiras?
É pela responsabilidade de distinguir entre verdade e mentira – e as mil e uma nuances entre esses extremos – que o jornalista preserva a sua dignidade. Confundi-lo com um mensageiro, além de falso, seria uma desonra que profissional algum deveria admitir.
*Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF)
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