Antonio Carlos Ribeiro*
Os evangélicos talvez sejam o grupo social com maior dificuldade de elaborar as mudanças oriundas deste começo de século e milênio. As dificuldades não residem na ascensão de 36 milhões de brasileiros que saíram da miséria absoluta, nem na dos 22 milhões que passaram a integrar a classe média – classes sociais em que estão a maioria de seus membros – mas falhas graves no impacto social de suas propostas teológicas, gerando contradições nas decisões eclesiais e políticas das cúpulas das igrejas, com o consequente dano hermenêutico das mudanças em seu discurso.
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Se as mudanças na economia através dos pacotes de políticas sociais, com um elenco de programas tendo à frente o Bolsa Família – executados de forma interligada aos aumentos reais no salário mínimo – tiveram efeitos significativos sobre a economia brasileira, propagando-se depois em programas de estímulo ao emprego e renda, aos avanços monumentais na área da educação – o Ensino Fundamental passando a ter nove anos, o Ensino Médio sendo avaliado pelo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), e o Ensino Superior pelo Exame Nacional do Desempenho de Estudantes (ENADE) – no conjunto, foram as principais ferramentas responsáveis pela revolução na ascensão social e qualidade de vida dos brasileiros.
O crescimento dos pentecostais, embora já estabilizado, encontrou campo fértil de expressão nesta onda de desenvolvimento, inclusive na área social, política e econômica que, junto com o dos demais evangélicos, não se fez acompanhar pelo avanço do seu discurso sobre o sagrado – a teologia – incumbido de refletir, pensar a fé e fazer propostas diante desse conjunto de mudanças. Enquanto era minoria, mesmo ganhando visibilidade pela participação no Congresso que promulgou a Constituição de 1988, com troca de votos por emissoras de rádio e TV, e outras barganhas, não conseguiu diminuir a assimetria com os avanços da sociedade. Isso fez com que perdesse apoio nas tensões com a igreja católica e as religiões de matriz africana. O crescimento não teve eco no discurso.
Entre os pentecostais esse impacto foi mais forte. Por ser um contingente muito maior, com sua base composta majoritariamente do grupo chamado pelos sociólogos de classe média baixa, um grupo mediano da classe média intermediária e certa minoria, a classe média alta, em que se situam os dirigentes eclesiais que determinam sua teologia e assim fixaram os marcos do pensamento, associando o poder pastoral, o acesso à comunicação e a chegada ao poder político, mais concentradamente no poder legislativo. O número de candidatos pentecostais e neopentecostais às assembleias legislativas, Câmara dos Deputados e Senado no pleito atual foi expressivo. Bispos, pastores, missionários e apóstolos pulularam, parecendo um grande ‘concílio’, se o modelo fosse o católico.
Ocorre que as já mencionadas mudanças na economia impactaram também as igrejas, balançando esse construto eclesial de aparência norte-americana e bases populares oriundas das contradições políticas das elites brasileiras. Com acesso a esses programas que propiciam uma ascensão independente da tutela religiosa, do clientelismo e do voto de cabresto, o controle da classe média alta sobre as classes médias intermediária e baixa no interior do grupo ficou mais difícil. A independência das classes médias intermediária e baixa propiciou uma independência ideológica e religiosa que agora gera impactos no processo eleitoral.
Os traços ideológicos – que subsidiam a leitura da realidade política – destas classes médias emergentes são o outro componente. A classe média alta tem uma perspectiva mais próxima da visão das elites, mesmo que não façam parte dela. O que atenua seu sofrimento por não pertencer a ela são um conjunto de pequenas vantagens econômicas e sua expressão no comportamento, no consumo e na exibição, que a distinguem. Perfis como morar num bairro nobre, ter os filhos estudando em grandes universidades, frequentar clubes, vestir roupas de grifes famosas, viajar de avião e ter uma propriedade – mesmo que uma chácara – são fundamentais para distingui-la das demais classes médias. E o mais importante, suportarem sua condição social, fazendo o esforço possível para superá-la.
Essa expectativa sofre uma frustração com os avanços da economia e as conquistas das classes trabalhadoras. O fato dos filhos de trabalhadores chegarem aos cursos de graduação e pós-graduação das universidades federais – que encabeçam o ranking da formação acadêmica – e as famílias terem acesso a planos de saúde, adquirirem casa e carro, chegarem a postos de mando e viajarem para o exterior afetou profundamente o elemento psicológico distintivo do grupo. É o caso dos avanços e conquistas das classes médias intermediária e baixa que afetam a autoimagem da classe média alta. A onda de racismo nas capitais, especialmente as concentradas nas regiões sul e sudeste, contra negros – como estereótipo das etnias não classificadas como brancas – resulta dessa conquista social.
O impacto desse fato no processo eleitoral, mormente no segundo turno das eleições para os governos estaduais e federal, é revelador. Nos governos estaduais o dado mais flagrante é a influência do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e sua campanha de ódio em São Paulo, levando os eleitores a perenizá-lo no Palácio dos Bandeirantes, para contrapor sua incapacidade agora tácita de voltar ao Palácio do Planalto, por causa da crise econômica aguda da saída de FHC. Orando para as chuvas chegarem até novembro, evitando o nível crítico do consumo de água, diz a Sabesp. Outro fato, para dentro do universo religioso, foi o candidato evangélico Garotinho não voltar ao Palácio das Laranjeiras, mesmo tendo sido eleito com quase 700 mil votos na legislatura passada. Nos dois casos, as classes médias interferiram.
No caso da eleição para Presidente da República, a tensão passa do âmbito regional para o nacional. Estima-se que 67% da minoritária classe média alta vota no candidato Aécio Neves, para se vingar do governo cujas decisões destruíram os elementos distintivos de sua condição de classe. Pode parecer muito pouco, mas significa muito, especialmente para quem tem nele sua principal afirmação social, para não dizer a única. Por outro lado, os 52% de votos da classe média intermediária e os 53% da classe média baixa parecem sustentar a candidata Dilma Rousseff, inspirando a ênfase no amor e na verdade para o eleitorado ver os avanços conquistados.
O aprimoramento do discurso teológico das igrejas evangélicas e pentecostais, com mais qualidade informativa, pastoral e comunitária pode ter um elemento significativo nessa conjuntura. Pode-se argumentar que todos foram surpreendidos pela celeridade, que só o debate forçado pela campanha eleitoral visibilizou esse fato e que esse impacto pode plenificar essa reflexão para ganho da sociedade. Mas o fato inconteste é que o discurso teológico ficou assimétrico, não foi analítico e se perdeu em intervenções caricaturais e pontuais. E pode abrir um nível importante de intervenção das Ciências da Religião, por sua visão de conjunto, capacidade de reflexão, superação de fronteiras e pró-atividade no debate de temas religiosos na sociedade.
* Jornalista, teólogo e professor (Doutor em Teologia, Pós-Doutor em Letras (PUC-Rio) e Pós-Doutorando em Letras (UFT-Capes)
* Jornalista, teólogo e professor (Doutor em Teologia, Pós-Doutor em Letras (PUC-Rio) e Pós-Doutorando em Letras (UFT-Capes)
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