Antonio Carlos Ribeiro
O espetáculo teatral Contos para as paredes, apresentado pela atriz Joana Ferry, reconstrói o ambiente do claustro através do discurso, da gestualidade e da leitura de certo religioso clássico, com as marcas da inserção dos personagens e da forte atualidade. Seja pelo monólogo, alternando a narrativa com a fala dos personagens, seja pelas situações com enredo emocional correlato, seja pela recriação da aura das paredes da foto do programa.
As paredes são parte significativa do espetáculo por serem a interface visual do tema tratado. E, mais, por lembrarem os muros que escondem situações, protegendo do olhar público o que supõe a penumbra para ser contemplado, compondo espaços ‘sagrados’ em construções sacras e com registros de cultura nas clássicas, que servem para guardar o que não pode vir à luz.
Ao mesmo tempo, os monólogos de Joana Ferry possibilitam que as paredes dos diversos claustros sejam rompidas, criando o acesso do público a esse conteúdo de natureza espiritual – mais que apenas religioso – reelaborado a partir das literaturas portuguesa, espanhola e russa. A densidade espiritual do que é dito, somado ao significado literário dos autores, transportam o impacto da mística à cultura.
Os contos já revelam certa rebeldia, ao arrancar para fora do claustro – seja uma ilha, uma cidade ou um mosteiro cluniacense do século XII – os aspectos da vida tensa e densa dos que abandonam a vida dos seres humanos para buscar a mneme (memória), diária e ininterruptamente ao encontro do sagrado, que lhes permite voltar à vida dos outros seres humanos para lhes sinalizar o caminho da busca de sentido.
Escritos em forma mesma de conversa com a própria alma, esses solilóquios trazem as marcas dos diálogos profundos, através dos escritos remotos de mestres – da literatura russa, Leon Tolstoi, com Três Eremitas e Onde Existe o Amor, Deus Aí Está; da literatura espanhola, Leopoldo Lugones, com A Estátua de Sal; e da literatura portuguesa, Eça de Queirós, com Frei Genebro – reconhecidos por sua expressão na literatura.
A este quarto trabalho calmo, conciso e consistente de Joana Ferry, soma-se a contribuição do diretor Evandro Meirelles Santos, que acrescenta densidade à atuação, ao lembrar que “o ator, sem fé no ofício, despreza a solidez das paredes do teatro. Esquece que elas existem há séculos, à espera que as palavras ali guardadas sejam colhidas com cuidado. O texto é, portanto, o senhor do jogo. Só ele deve sobressair no palco”.
O espetáculo dedicado à exposição das paredes da Igreja mostra outro aspecto da personalidade da atriz, sua formação psicanalítica, na qual o próprio diretor também tem participação. Santos, valendo-se da textura mesma dos textos encenados, observa que há muitos anos ele fala para as paredes. Mas nos últimos 20 anos, Joana Ferry está entre os que decodificam essas palavras através do eco das paredes.
Ainda sem patrocínio, Joana se inscreve entre aqueles profissionais que vivem da confiança última no trabalho que escolheram, e da busca permanente de seu aprimoramento através do palco, das luzes, das cenas, mas, sobretudo do rigor do texto, onde a qualidade é o mais importante.
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