Antonio Carlos Ribeiro
Hotxuá (Documentário, Brasil, 1h 10min, dirigido por Letícia Sabatella e Gringo Cardia, com atores desconhecidos) trata de um tema em falta no mercado: o riso. O filme mostra os Krahô, tribo indígena que vive próxima a Palmas (TO), conhecida como povo que ri, e que escolheu um membro para ser sacerdote. Do riso.
O mundo ocidental parou para pensar sobre o tema quando Umberto Eco publicou O Nome da Rosa, um romance intitulado pela expressão medieval que designa o poder das palavras. Na investigação de assassinatos em série, um franciscano britânico descobre que o monge mais velho da abadia cluniacense matava. E, o mais dramático, por causa do zelo pela doutrina. Colocar veneno nas páginas de um livro desaparecido da obra de Aristóteles, o tornava fatalmente prazeroso para quem lia, em busca do tema tão urgente quanto raro na Itália medieval: o riso.
Obra que marca a estreia da atriz Letícia Sabatella e do cenógrafo Gringo Cardia na direção, Hotxuá encanta quem tem olhar profundo, se emociona com a singeleza da alma humana – diferente dos colonizadores espanhóis que negavam a alma aos índios, esbarrando na defesa intransigente do bispo Bartolomé de Las Casas – ela recupera o olhar desarmado e o riso fácil, que move menos músculos que o cenho cerrado dos oligarcas.
O filme esbanja imagens de sorrisos fartos, ócio inocentemente despudorado, liberdades só assumidas por quem a vive desde tempos pré-uterinos. Não apenas gargalham, mas se assenhoreiam do tempo, com tanta liberdade que torna compreensíveis os que os invejam
O enredo registra as datas, épocas e estações mais marcantes. A acompanhar o dia a dia dos krahô, a equipe mostrou os ritos do preparo coletivo dos alimentos, a Festa da Batata – a celebração ritual mais importante da tribo – e a mudança da estação chuvosa para a seca, fundamental em seu ciclo de vida.
E no centro da história mostrada na película, o papel de um sacerdote. Atípico, exótico, irreverente, até mesmo irreconhecível para os moldes do mundo ocidental, mesmo os tipicamente urbanos desta terra brasilis, em que as pessoas usam muitos tecidos para se cobrir – talvez por terem o que esconder, contraponto aos que não podem ser mais transparentes, já que inteiramente expostos – sem precisar ‘interromper’ a vida para ir à celebração, porque sua vida é celebração.
E o múnus pastoral deste xamã é encantar as pessoas com a vida. Ele provoca o riso no cotidiano – da pesca ao preparo coletivo dos alimentos, das ‘encenações’ acompanhadas por um público reverentemente sorridente, da presença, dos ritos de passagem da chuva até o que ‘libera’ a moça para ter namorado – em gestos litúrgicos comunitários, despossuídos de poder e mando, donos apenas da liberdade.
E a liberdade desperta a atenção porque é a mesma que mais falta aos ‘caras pálidas’. Dos comportamentos à mesa ao vestuário de cada ocasião, dos limites demarcados do público e do privado – especialmente para quem há séculos gosta de publicar o privado e privatizar o público – e dos códigos que, especialmente em espaços de salamaleques sagrados, mais escondem que revelam.
Com essa preparação de alma, sem prudências pudicas e olhos abertos e profundos, como o de quem ensinou que sinal do reino é quando os cegos vêm, os coxos andam e aos pobres é anunciada a salvação, recomendo assistir. Sem medo de rir e ser feliz!
Um comentário:
Menino grande, você se transcendeu... Pela beleza, ilações no texto, e a proposição profundamente verdadeira:Dos comportamentos à mesa ao vestuário de cada ocasião, dos limites demarcados do público e do privado – especialmente para quem há séculos gosta de publicar o privado e privatizar o público – e dos códigos que, especialmente em espaços de salamaleques sagrados, mais escondem que revelam!" Deus todo luz sempre para nós, em você.
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