Antonio Carlos Ribeiro
Duas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) desta semana chocaram a sociedade, expuseram a guerra entre magistrados ficha limpa e ficha suja, e clamaram pela intervenção de setores moralmente idôneos. A primeira foi a decisão do ministro Cesar Peluso no julgamento da lei da ficha limpa, mesmo votando duas vezes para que Jader Barbalho, que responde a processos na Justiça, volte ao senado. E uma sessão exclusiva para empossar a ministra Rosa Weber, sem que ela tivesse votado, sob o risco de garantir a moralidade do ato.
A desfaçatez do ministro exigiu que a posse do senador ficha suja fosse imediata, após o recesso parlamentar, obrigando a uma reconvocação do Senado, além de onerar a nação com direitos e recebimentos do ano em que não trabalhou. A despeito da lei, que deveria cumprir e fazer cumprir, além de mostrar desrespeito pela cidadania, já que esta já demonstrou seguidas vezes desejar a moralização do poder público. A interpretação popular é que, apesar da população querer se livrar dos bandidos no poder, o Poder Judiciário deseja outra coisa.
A outra decisão, em forma de liminar, exarada pelo ministro Marco Aurélio Mello, o único nomeado pelo único Presidente da República a sofrer impeachment no Brasil e na história moderna, em nome do único poder da República sem legitimidade popular – e portanto incólume à vontade dos cidadãos – impedindo que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão criado para fiscalizá-la, investigue seus membros. Isso levou o ministro Ricardo Lewandowski a entrar para a lista dos suspeitos ao negar a investigação de juízes, impedindo que o nome de 216.800 magistrados fossem submetidos ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), do Ministério da Justiça. Sem transparência.
Como sabe a Justiça, a plena liberdade de acesso dos réus – alguns desembargadores – às provas, possibilitará a destruição de provas e a fraude, intocáveis pelo cerco à Corregedoria Nacional da Justiça, criada para tal. Mais complicado que saber da atitude de juízes que, corporativamente, asseguram a impunidade dos colegas em detrimento da sociedade brasileira, é saber que são os que mais e melhor sabem dos desvios de conduta, de que só serão julgados por colegas e, pior, que a sentença máxima que receberão é a de serem aposentados com todos os recebimentos intocados. Na verdade, uma premiação para funcionários públicos corruptos, frente à qual a possibilidade de condenação não chega a ser um risco.
Por trás de todo o processo de moralização da Justiça, especialmente dos Juízes, está a atuação da ministra Eliana Calmon, Corregedora Geral da Justiça, que inevitavelmente entrou em conflito com o Presidente do STF e CNJ, especialmente porque ela referiu-se em público a “bandidos que se escondem atrás das togas”, vista como uma afronta ao judiciário e não como o que é, uma denúncia do comportamento de juízes, desembargadores e ministros corruptos, isto sim uma afronta à sociedade. Ocorre que a ministra, por dizer a verdade, alcançou o apoio da sociedade e do poder legislativo e o ódio dos colegas corruptos, obrigando às ações vergonhosas, recursos vis utilizados pelo presidente, e recurso comum aos que ‘precisam’ se afirmar, diante da afronta.
O fato de isso ter ocorrido na semana de lançamento de A Privataria Tucana também é sintomático. O escândalo tem proporções geométricas, alcança dos mandatos da presidência, governadores, prefeitos a outros funcionários. Sem falar na cobertura da GAFE (Globo, Abril, Folha e Estadão), que se confirma no silêncio sobre a obra. Se foi comprada aos milhares para ser destruída, só mudou porque a editora vendeu mais, aumentou a procura e se tornou opção de presente de natal. Além das versões disponibilizadas distribuídas na internet.
Aqui entra o papel das igrejas provocando o debate da convivência humana, especialmente no que diz respeito à ‘convivência dos interesses diversos, determinando leituras com proximidades em algumas parte e divergências brutais. A contribuição das igrejas vem do fato de também serem elas comunidades humanas, marcadas pela busca do Sagrado, com um mandato e hermenêuticas as mais diversas, que vão desde o sentido da salvação que anunciam, da qual nascem e para a qual existem, até a clareza de que não detêm um discurso absoluto – aprendida a duras penas por algumas, e não aprendidas por outras – causando dor e sofrimento a si e à sociedade.
As igrejas, desde a idade média e a modernidade, têm séculos de aprendizagem da convivência dos semelhantes e dos diferentes, a partir do evangelho que vê os seres humanos em igualdade, e a elaboração do conceito de graça, indispensável no cristianismo. Este tema reflete a dificuldade de transigir entre a afirmação de fé e a elaboração da prática, já que a prática mostra se o conceito de graça é apenas formal, sem se comprometer com a humanidade plena, noção a que Dietrich Bonhoeffer chamou de graça barata, em contraposição à graça cara, que vai além dos discursos, busca relações igualitárias, sem negar a todos o que afirma a si (Res-publica).
Mas essa situação obriga as igrejas a reverem seu estatuto ontológico básico, a partir de suas origens europeias e portadoras da mesma discriminação trazidas por suas culturas à sociedade brasileira. O problema é que a reflexão das igrejas deve avançar mais, já que a sociedade avançou décadas em uns poucos anos, e com controles religiosos e ideológicos fragilizados, os membros das comunidades são apanhados rejeitando propostas como cidadania, direitos humanos, respeito ao diferente, solidariedade com os fracos, fazendo-as descobrir, surpresas, que aqueles eram os valores que deveriam anunciar.
Ao se descobrirem identificadas com o mesmo sistema de privilégio que defendem – conscientemente ou não, interna e externamente, incluindo ou excluindo pessoas – devem pedir perdão, confessar o pecado e viver de forma a sinalizar novo caminho para a sociedade, sendo o melhor exemplo prático da mensagem que anunciam.
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