Antonio Carlos Ribeiro
A obra cinematográfica de Florian Cassem (O Dia em que não nasci[Das lied in mir]; Alemanha, 2010, 95min, drama) trata dos débitos das ditaduras civis e militares latino-americanas. Um tema dual, já que sobre ele existem diversas obras – remontando à segunda guerra, ao nazismo e ao surgimento da aliança militar ocidental – mas também porque essa produção ainda provoca efeitos, parecendo ainda não ter esgotado a caudal de dores, ressentimentos e sonhos interrompidos, às dezenas de milhares, na América do Sul. Veja
O assunto relembra o já antigo “A história oficial”, da culta professora de história que acorda da ingenuidade ao descobrir que o marido é torturador e que a filha ‘adotada’ é uma das netas das Madres de La Plaza de Mayo, sequestrada de famílias de militantes torturados e mortos da ditadura militar argentina. O ingrediente novo é a memória afetiva de uma criança de 3 anos – que suporta o embate com três décadas de vida em outro país, cultura e língua – que a obriga a interromper um longo período de sua vida, para recuperar as três décadas que lhe foram roubadas.
O filme narra a história de uma nadadora que vive na Alemanha, viaja ao Chile e, durante a escala em Buenos Aires, ouve uma canção de ninar que a faz cantarolar as frases num espanhol que ela não fala. Ela se emociona, perde a conexão e fica em Buenos Aires. Telefona para o pai, que aparece no hotel dois dias depois. Isso inicia um processo de revelações sobre a ditadura militar, as razões de ter sido levada à Alemanha nos anos 80, chegando ao clímax de procurar a família dos verdadeiros pais.
Fatos como o contato com a polícia, o envolvimento com um policial, a revelação de que sua família alemã colaborou com o regime e o reecontro com sua família biológica são etapas que vão revelando a complexidade do crime, de um lado, e do outro, a calma, a paciência e o amor necessários ao restabelecimento da verdade, buscando não ferir quem errou mas agiu de boa fé. Isso exige maior sensibilidade, coragem e humanidade para desconstruir o erro sem causar mais mal.
O filme é denso como o trânsito da capital argentina e tenso como os enredos que envolvem as histórias da repressão, sobretudo ao mexer na ferida aberta da estratégia de sequestrar filhos de opositores do regime para “purificar” o país da influência do comunismo. Na verdade, a segunda etapa de um monumental crime de Estado para enfrentar um perigo mais imaginário que real, resultante da repressão extrema em defesa da ideologia da segurança nacional.
O fato desse filme estar em cartaz nesta época parece integrar esse kairós latino-americano – um tempo escatológico-apocalíptico em que nos defrontamos com as dores desse tempo em que passamos a limpo nosso passado recente – acordando de um inebriante pesadelo, que se torna mais forte tanto quanto a consciência começa a se plenificar, nos fazendo a um só tempo, tomar consciência do ocorrido, descobrir o que fazer para resgatar dignidades, apoiar a reconstrução da vida, justiçar as vítimas, recuperar a memória dos torturados, e confrontar os interesses que provocaram tanto sofrimento e morte.
Três fatos recentes emprestam importância a este tema recorrente: a dificuldade do debate pelo controle das elites financeiras sobre a grande mídia; a condenação do Brasil pela Corte Inter-americana de Direitos Humanos (CIDH) após o Supremo Tribunal Federal manter a lei da anistia e negar a justiça às vítimas da ditadura; a repatriação dos documentos que estavam na sede do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), em Genebra (Suíça), e do Center for Research Libraries, em Chicago (EUA); e a condenação de militares e civis envolvidos na repressão argentina, que produziu o maior número de mortos em nosso continente.
Para quem não tem medo de filme sobre o terror real e tem coragem para se defrontar com verdade e disposição, e amor para retomar a vida, compromissar-se com seu tempo e seguir em frente, recomendo assistir.
Um comentário:
agora, é ver o filme!
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