Representantes de 31 entidades religiosas ou ligadas à educação e aos estudos da religião participaram durante todo o dia desta segunda-feira (15 de junho) de audiência pública convocada pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, para debater a forma legal do ensino religioso nas escolas brasileiras. O painel de expositores foi formado por 10 representantes de grupos religiosos significativos no país, além de 21 selecionados pelo ministro (em meio aos 227 inscritos através de convocação pública) por conta de sua “expertise” sobre a temática. Todos eles enviaram contribuições prévias por escrito e apresentaram uma síntese das suas posições na audiência, que transcorreu das 9 às 19h30 e foi transmitida ao vivo pela TV e Rádio JUSTIÇA (veja aqui e abaixo).
Entre os participantes estava Gilbraz Aragão, coordenador do Observatório das Religiões da UNICAP e membro do Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa da Secretaria de Direitos Humanos do governo do Brasil (SDH-PR) – a quem representou. O professor Gilbraz defendeu que “… longe de se embasar no ensino de uma religião ou das religiões na escola, o Ensino Religioso em nosso Estado laico se justifica pela necessidade de formação de cidadãos críticos e responsáveis, capazes de discernir a dinâmica dos fatos religiosos que permeiam a vida pessoal e social. As diferentes crenças e expressões religiosas, bem como a ausência delas por convicções filosóficas, são aspectos da realidade que devem ser socializados e abordados como questões socioculturais, que contribuem na fundamentação das nossas ações. O Ensino Religioso deve tratar pedagogicamente das atitudes de abertura e cuidado para além de si, que existem entre e para além de todas as tradições religiosas, deve resgatar os valores humanos que as espiritualidades podem trazer para a educação dos nossos filhos…” (veja abaixo a íntegra do texto apresentado).
A audiência pública buscou subsidiar o julgamento da ADI nº 4.439, que discute os modelos de ensino religioso em escolas públicas. Ao encerrar a sessão, o ministro Barroso afirmou que a democracia contemporânea contempla três dimensões que devem ser equilibradas: a dimensão representativa, feita por meio do voto, a dimensão substantiva, na qual o Estado deve proteger direitos e a dimensão deliberativa, baseada no debate público e apresentação de razões. Com a audiência, o ministro colheu subsídios para que se obtenha “o melhor equilíbrio possível entre esses elementos, votos, direitos e razões”, no que diz respeito ao Ensino Religioso em país de liberdade religiosa e Estado laico. Ele observou que são duas linhas defendidas: a primeira sobre a possibilidade de que esse ensino seja confessional, ou seja, sobre determinada religião e ministrado por seu representante; e a posição contraposta, que foi majoritária na sessão, é a de que a aprendizagem deve ser de natureza histórica e filosófica, ministrada por estudiosos da religião concursados. Segundo o ministro, o segredo do mundo moderno e do constitucionalismo democrático é encontrar mecanismos que permitam que cada pessoa viva a sua crença e, ao vivê-la, tenha a capacidade de respeitar a crença do outro. Espera-se que no próximo semestre prossiga o julgamento do caso.
Aproveitando o ensejo e para ir sedimentando os tempos mais claros que virão, no dia 16 (terça), o professor Gilbraz, junto de Francielle Morez e Alexandre Brasil, do Comitê da Diversidade Religiosa, continuaram a tratar ainda da temática com a Coordenação Geral de Educação em Direitos Humanos da SDH-PR e delegados da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação. Aí foram realizados encaminhamentos no sentido de incluir as questões do Ensino Religioso na formulação da Base Nacional Curricular Comum para o Ensino Básico e demais diretrizes curriculares, além de se agendar um Seminário de articulação das especializações e licenciaturas em Ensino Religioso, no fito de incrementar a formação dos seus professores. Com isso, esperamos que avance a regulamentação e implementação de processos de aprendizagem trans-religiosa no país, de vez que a consciência histórica e hermenêutica das religiões é muito importante para a formação esclarecida e dialogal dos cidadãos brasileiros.
Íntegra do POSICIONAMENTO DO CNRDV-SDHPR SOBRE ENSINO RELIGIOSO
O Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (instituído pela Portaria n. 18/2014 de 20 de janeiro de 2014), preocupado com o debate sobre o Ensino Religioso nas escolas públicas, por considerar a importância da educação para o diálogo entre as tradições de fé e convicções filosóficas no Brasil e por considerar a necessidade de consciência histórica e hermenêutica das religiões para a formação esclarecida e dialogal dos cidadãos, vem manifestar perante as autoridades e a sociedade o seu posicionamento sobre a regulamentação da aprendizagem desse campo de conhecimento humano e componente curricular na formação básica das nossas crianças.
Lembramos que o Ensino Religioso já é disciplina das escolas públicas de ensino fundamental (Cf. § 1º do art. 210 da Constituição Federal) e parte integrante da formação básica do cidadão, assegurado o respeito à diversidade cultural do Brasil e vedadas quaisquer formas de proselitismo religioso. Trata-se, assim, de um componente curricular no âmbito da educação sistemática e formal, articulado com os princípios e fins da educação nacional, devendo contribuir para o pleno desenvolvimento do educando e seu preparo para a vida cidadã (Cf. Art. 2º da LDB n° 9.394/96). O Ensino Religioso integra a base comum de conhecimentos da Educação Básica, a qual é constituída por saberes e valores produzidos culturalmente, compreendidos como essenciais ao desenvolvimento das habilidades indispensáveis ao exercício da cidadania (Cf. art. 14 da Resolução CNE/CEB nº 4, de 13 de julho de 2010).
Por isso, e para que avance o processo de regulamentação cidadã do Ensino Religioso, o Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa defende que o Ministério da Educação publique diretrizes curriculares nacionais para o Ensino Religioso, a fim de orientar os sistemas de ensino na elaboração de suas propostas pedagógicas, em consonância com os pressupostos legais e curriculares em vigor; e defende igualmente que o Conselho Nacional de Educação emita diretrizes curriculares nacionais para a formação dos professores de Ensino Religioso, em curso de licenciatura, nos termos do art. 62 da LDB nº 9.394/96. Defende também que o Supremo Tribunal Federal aceite a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 4.439) proposta pela Procuradoria Geral da República, para assentar que o Ensino Religioso em escolas públicas só pode ser de natureza não-confessional.
Longe de se embasar no ensino de uma religião ou das religiões na escola, o Ensino Religioso em nosso Estado laico se justifica pela necessidade de formação de cidadãos críticos e responsáveis, capazes de discernir a dinâmica dos fatos religiosos que permeiam a vida em âmbito pessoal, nacional e mundial. As diferentes crenças e expressões religiosas, bem como a ausência delas por convicções filosóficas, são aspectos da realidade que devem ser socializados e abordados como questões socioculturais, que contribuem na fundamentação das nossas ações. O Ensino Religioso deve tratar pedagogicamente das atitudes de abertura e cuidado para além de si, que existem entre e para além de todas as tradições religiosas, deve resgatar os valores humanos que as espiritualidades podem trazer para a educação dos nossos filhos. Trata-se, então, de comparar criticamente e interpretar os fatos religiosos nos seus contextos históricos, para que as novas gerações possam decidir com mais liberdade sobre essa dimensão de transcendência na vida.
Porque religião não se ensina propriamente na escola e sim nos ritos dos grupos religiosos, mas se pode e deve refletir no ambiente escolar sobre o fenômeno humano de abertura para a transcendência, em busca de interpretações mais universais e significados mais profundos para o que é experimentado como sagrado em cada cultura. Todas as pessoas têm direito ao esclarecimento das crenças da humanidade e para isso o Ensino Religioso deve avaliar as notícias religiosas em seus contextos, estudando as religiões como questão e não como dado. O Ensino Religioso, compreendido como campo de aplicação pedagógica da área de conhecimento das Ciências da Religião, numa visão transdisciplinar, não objetiva transpor conteúdos enciclopédicos e muito menos doutrinais para um ensino catequético, mas o desenvolvimento de processos de aprendizagem participativos, de construção de conhecimentos através de projetos de pesquisa, em conexão com as pautas de estudo e engajamento dos cientistas da religião.
Então, o Ensino Religioso deve refletir sobre as experiências humanas de transcendência, através de eixos curriculares como culturas e tradições, textos sagrados e teologias, ritos e ética das tradições espirituais. Mas, sobretudo, o educador precisa compreender e se envolver com a situação social e religiosa dos educandos a fim de construir com eles conteúdos programáticos contextuais para o Ensino Religioso. O docente precisa interagir com o contexto concreto das religiões na vida dos educandos, o que inclui vivências contraditórias e aspectos desumanizadores e opressivos, para promover uma tomada de consciência desmistificadora das religiões. As práticas religiosas podem nos libertar do egoísmo ensimesmado, mas por vezes as religiões precisam se emancipar de degenerações neuróticas e alienantes. O Ensino Religioso, assim, deve promover uma ação educativa esperançosa, em que o anúncio e a utopia desempenham um papel também reconstrutivo e transformador das religiões.
Hoje o mundo está sendo abalado por notícias de um fundamentalismo que se diz islâmico. Mas não devemos esquecer que o termo fundamentalismo surgiu entre cristãos norte-americanos, que no começo do século XX criaram um movimento político-teológico para combater os outros cristãos, liberais, que praticam uma interpretação informada da Bíblia e aceitam as causas modernas do feminismo e do socialismo. Assistimos ao crescimento de comunitarismos fundamentalistas agora em várias religiões e em todas as igrejas, também no Brasil, onde certos grupos e lideranças exercitam uma leitura pretensamente literal de textos sagrados para revestir um projeto conservador de dominação político-cultural.
Aí se opõe um “Deus” pai sério e punitivo a uma divindade amorosa de justiça e compaixão; uma igreja exclusivista, rígida e hierárquica, a movimentos ecumênicos em favor da terra eco-consciente; manifesta-se um apego teológico ao pecado original, contra uma espiritualidade da criação e sua compreensão de bênção original; prega-se a intolerância ao estrangeiro e ao “estranho” moral, contra o abraço ao feminino e aos outros gêneros; o medo da ciência, enfim, ao invés do incentivo à sapiência. São discursos que hostilizam em especial as telúricas religiões indígenas e afro-negro-brasileiras, consideradas idólatras. Contra eles devemos invocar a laicidade: o Estado brasileiro é laico e pluralista, acolhe todas as religiões sem aderir a nenhuma. Não é lícito que uma religião imponha à nação seus pontos de vista e não podemos deixar os espaços públicos republicanos ser ostensivamente ocupados e controlados por quaisquer comunitarismos ou igrejas. Uma autoridade pode ter convicções religiosas e filosóficas, mas não é por elas, mas pelas leis e pelo espírito democrático que deve governar.
Cabe ao Ensino Religioso, justamente, esclarecer esses descaminhos da vivência espiritual e aquelas tentativas de controle do domínio público por igrejas, através da desconstrução histórica dos extremismos fundamentalistas e pela conscientização do fenômeno religioso genuíno. A experiência religiosa é sempre uma busca humana frente à morte, às limitações e aos conflitos que nos rondam. É busca e projeção de transcendência que, quem alcança, interpreta como manifestação poderosa e mais-que-humana de sentido, de uma outra realidade, que se tenta comunicar por símbolos, narrativas mitológicas, rituais litúrgicos, com consequências éticas e interditos morais. Fundada no respeito a esse poder criador que nos antecede e ultrapassa, a experiência religiosa, nas suas diversas formas históricas, é uma aposta na possibilidade de vida fraterna com os outros e com o cosmos.
Esperamos firmemente, então, que o Ensino Religioso se consolide para promoção do direito a esse esclarecimento das tradições de fé e convicções humanas, em prol da liberdade religiosa e de uma sociedade profundamente democrática, protegida pelo Estado laico. Porque, enfim, a religião pode ser antídoto para a loucura de existir: “O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara loucura... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas, bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue” (Guimarães Rosa, Grandes Sertões).
Fonte: http://www.unicap.br/observatorio2/?p=2011
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