terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Ditadura: do início do fim aos últimos restos


Antonio Carlos Ribeiro

A atitude do presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), José Maria Marin, de processar Ivo Herzog, filho do jornalista Vladmir Herzog por ter feito uma petição pública pedindo seu afastamento por ter participado do regime ditatorial, é a decisão política menos inteligente da década. E a segunda mordida na mesma isca.

A decisão de Marin consegue superar a decisão da CBF, a segunda mais equivocada, de elegê-lo para a função. Que por sua vez supera a terceira mais despropositada, que foi deixar que a sequência de escândalos envolvendo João Havelange e Ricardo Teixeira fosse postergada até a renúncia para evitar processos.



O acúmulo de tropeços políticos, com o cheiro e as cores do período mais vil da história brasileira – que chegou a ser mais cruel que os 350 de escravidão, mesmo durando duas décadas, em termos de negação da humanidade, de maus-tratos, castigos cruéis e barbárie política – culminam na vaidade e insensibilidade política de Marin.

Escândalo de dimensões geométricas previsíveis, a reação ao orgulho ferido, comum a todos que apoiaram a ditadura – dos pseudo-parlamentares que simulavam a existência de tribunas autônomas até as TVs e jornais, nascidos dos jogos de favores do regime de chumbo – brotam quando a sociedade reage à gastança sem fim.

A decisão ilegítima e inoportuna vem da absoluta legalidade de Ivo Herzog propor uma petição pública no site Avaaz.org pedindo o afastamento de um ex-deputado da Arena, partido de sustentação do regime. Ademais, nos anos 1970, o período mais sangrento da repressão, este ‘parlamentar’ tenha discursado contra o jornalismo da TV Cultura, sempre um padrão de inteligência, agudez e crítica.

Na falta mais absoluta da razão prática – que poderia fazer Kant mover-se no túmulo, se houvesse qualquer razoabilidade no regime de exceção, só apoiado por personalidades politicamente pífias ou eticamente nulas – não percebeu o empresário os efeitos políticos possíveis – e pior, repetindo o recurso à justiça para exigir respeito ao horror.

A execução de Vladmir Herzog, diretor de Jornalismo da TV Cultura, em 1975, se deu dezesseis dias depois da verborreia insana e violenta desta figura patética. Herzog desceu da redação da Fundação Padre Anchieta, atravessou a rua e se apresentou ao Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). Meia hora depois estava assassinado.

A expressão truculenta do regime encontrou uma reação pastoral inusitada. O rabino Henry Sobel, encarregado do sepultamento religioso, com apenas 32 anos e recém-chegado a São Paulo, convidou dois ‘colegas’ do mundo ecumênico: o Cardeal D. Paulo Evaristo Arns e o Pastor Presbiteriano Jaime Wright, que acabaram por se tornar a trindade religiosa cuja solidariedade cativou a sociedade e iniciou o fim do regime.

Mesmo durando ainda 10 anos, o regime ficou deletério, violento, impotente e, sem lidar com a inexpressividade, brutal. A crise de legitimidade, guardadas as proporções, é a mesma sofrida neste momento. A insensibilidade não permite o recuo e acelera situações de desgaste para os setores fossilizados da sociedade.

Qual o avanço possível para uma figura inexpressiva – condição impossível de ocultar ao ser posto na função – que participou do regime de exceção, discursou contra um jornalista assassinado num quartel do Exército, que processa o filho que defende a honradez do pai, um judeu que escapou ao nazismo na Europa foi assassinado na unidade do Exército comandada pelo general Ednardo Ávila.

A petição pública só dá repercussão à decisão da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, de São Paulo, ao investigar o vínculo do presidente da CBF com a ditadura militar brasileira (1964-1985). Deixá-lo presidir o maior evento esportivo do continente só emporcalha o país, o esporte e a consciência democrática de atletas, dirigentes e público.

Anos após o fim da ditadura, esta segue sendo legitimada nos meios de comunicação, o setor da sociedade que mantém sua principal marca: o golpismo. A própria ascensão de figuras mórbidas da sociedade representa os últimos movimentos do monstro agonizante. A direitização da social democracia, significa a falência da oposição, a luta pela sobrevivência, e o desespero de ver triunfar as forças progressistas que têm vencido as últimas eleições.

Por isso denunciar participantes da ditadura em plena democracia é a tarefa da sociedade tipificada na denúncia do filho do jornalista vítima do crime de Estado. Sem perder de vista a corrupção do dinheiro público nas obras atrasadas e superfaturadas, a cidadania requer ainda a idoneidade de gestores ficha-limpa na democracia.

“É difícil imaginar que essa pessoa, com esse passado, será o anfitrião do maior evento esportivo do Brasil. Isso é inaceitável", disse Ivo Herzog, ao se referir à Copa do Mundo de 2014. Ao herdar a honradez, clareza e coragem do pai, ele se coloca à disposição, e afirma “se ele acha que essas acusações que eu estou fazendo são injustas, me proponho a debater com ele pessoalmente estes pontos”.

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