Antonio Carlos Ribeiro
A atitude do presidente da Confederação Brasileira de
Futebol (CBF), José Maria Marin, de processar Ivo Herzog, filho do jornalista
Vladmir Herzog por ter feito uma petição pública pedindo seu afastamento por
ter participado do regime ditatorial, é a decisão política menos inteligente da
década. E a segunda mordida na mesma isca.
A decisão de Marin consegue superar a decisão da CBF, a
segunda mais equivocada, de elegê-lo para a função. Que por sua vez supera a
terceira mais despropositada, que foi deixar que a sequência de escândalos
envolvendo João Havelange e Ricardo Teixeira fosse postergada até a renúncia
para evitar processos.
O acúmulo de tropeços políticos, com o cheiro e as cores do
período mais vil da história brasileira – que chegou a ser mais cruel que os
350 de escravidão, mesmo durando duas décadas, em termos de negação da
humanidade, de maus-tratos, castigos cruéis e barbárie política – culminam na
vaidade e insensibilidade política de Marin.
Escândalo de dimensões geométricas previsíveis, a reação ao
orgulho ferido, comum a todos que apoiaram a ditadura – dos
pseudo-parlamentares que simulavam a existência de tribunas autônomas até as TVs
e jornais, nascidos dos jogos de favores do regime de chumbo – brotam quando a
sociedade reage à gastança sem fim.
A decisão ilegítima e inoportuna vem da absoluta legalidade
de Ivo Herzog propor uma petição pública no site Avaaz.org pedindo o
afastamento de um ex-deputado da Arena, partido de sustentação do regime.
Ademais, nos anos 1970, o período mais sangrento da repressão, este ‘parlamentar’
tenha discursado contra o jornalismo da TV Cultura, sempre um padrão de
inteligência, agudez e crítica.
Na falta mais absoluta da razão prática – que poderia fazer
Kant mover-se no túmulo, se houvesse qualquer razoabilidade no regime de
exceção, só apoiado por personalidades politicamente pífias ou eticamente nulas
– não percebeu o empresário os efeitos políticos possíveis – e pior, repetindo
o recurso à justiça para exigir respeito ao horror.
A execução de Vladmir Herzog, diretor de Jornalismo da TV
Cultura, em 1975, se deu dezesseis dias depois da verborreia insana e violenta
desta figura patética. Herzog desceu da redação da Fundação Padre Anchieta,
atravessou a rua e se apresentou ao Destacamento de Operações de
Informações-Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). Meia hora depois
estava assassinado.
A expressão truculenta do regime encontrou uma reação
pastoral inusitada. O rabino Henry Sobel, encarregado do sepultamento
religioso, com apenas 32 anos e recém-chegado a São Paulo, convidou dois
‘colegas’ do mundo ecumênico: o Cardeal D. Paulo Evaristo Arns e o Pastor
Presbiteriano Jaime Wright, que acabaram por se tornar a trindade religiosa
cuja solidariedade cativou a sociedade e iniciou o fim do regime.
Mesmo durando ainda 10 anos, o regime ficou deletério,
violento, impotente e, sem lidar com a inexpressividade, brutal. A crise de
legitimidade, guardadas as proporções, é a mesma sofrida neste momento. A
insensibilidade não permite o recuo e acelera situações de desgaste para os
setores fossilizados da sociedade.
Qual o avanço possível para uma figura inexpressiva –
condição impossível de ocultar ao ser posto na função – que participou do
regime de exceção, discursou contra um jornalista assassinado num quartel do
Exército, que processa o filho que defende a honradez do pai, um judeu que
escapou ao nazismo na Europa foi assassinado na unidade do Exército comandada
pelo general Ednardo Ávila.
A petição pública só dá repercussão à decisão da Comissão
Estadual da Verdade Rubens Paiva, de São Paulo, ao investigar o vínculo do
presidente da CBF com a ditadura militar brasileira (1964-1985). Deixá-lo presidir
o maior evento esportivo do continente só emporcalha o país, o esporte e a
consciência democrática de atletas, dirigentes e público.
Anos após o fim da ditadura, esta segue sendo legitimada nos
meios de comunicação, o setor da sociedade que mantém sua principal marca: o
golpismo. A própria ascensão de figuras mórbidas da sociedade representa os
últimos movimentos do monstro agonizante. A direitização da social democracia,
significa a falência da oposição, a luta pela sobrevivência, e o desespero de
ver triunfar as forças progressistas que têm vencido as últimas eleições.
Por isso denunciar participantes da ditadura em plena
democracia é a tarefa da sociedade tipificada na denúncia do filho do
jornalista vítima do crime de Estado. Sem perder de vista a corrupção do
dinheiro público nas obras atrasadas e superfaturadas, a cidadania requer ainda a idoneidade de gestores ficha-limpa na democracia.
“É difícil imaginar que essa pessoa, com esse passado, será
o anfitrião do maior evento esportivo do Brasil. Isso é inaceitável",
disse Ivo Herzog, ao se referir à Copa do Mundo de 2014. Ao herdar a honradez,
clareza e coragem do pai, ele se coloca à disposição, e afirma “se ele acha que
essas acusações que eu estou fazendo são injustas, me proponho a debater com
ele pessoalmente estes pontos”.
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