quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Entre a fé e a natureza selvagem

Antonio Carlos Ribeiro

O filme ‘As aventuras de Pi’ (Life of Pi, dir. Ang Lee, com Suraj Sharma, Gérard Depardieu, Irrfan Khan, Adil Hussain, Aventura, EUA, Fox Film, 127min. 2012) é um relato cinematográfico belo e profundo. O primeiro encantamento é a fotografia, os efeitos especiais e a tecnologia 3D que põe o público – em especial os cinéfilos – numa tempestade sobre as águas de profundidades abissais. Sendo já isso uma metáfora para o inconsciente. E o toque de reflexão, sutileza e sensibilidade, o segundo, porta-voz da sabedoria milenar presente nas obras artísticas do mundo oriental.



O pequeno Pi Patel (Suraj Sharma) pertence a uma família proprietária de um zoológico na Índia. Com o fim do incentivo do poder público da cidade e Pi já adolescente, os pais decidem fechar o empreendimento e embarcar os animais numa viagem para o Canadá, onde pensam em vender os animais e recomeçar a vida. Além do conflito no refeitório, por causa dos hábitos vegetarianos e do maître que encarna a arrogância ocidental, navegam para uma tempestade terrível na área mais profunda do Pacífico. No bote salva-vidas estão Pi, um orangotango, uma hiena e uma zebra, aos quais se junta um tigre, mas só o primeiro e o último sobrevivem.

A narrativa de Ang Lee, já famoso por dirigir ‘Razão e Sensibilidade’, ‘O tigre e o dragão’ e ‘O Segredo de Brokebake Montain’, é cheia de ‘cacos’ que ajudam a olhar o conjunto do quadro que ele ‘pinta’. O menino perde a família de forma trágica, mesmo a bordo de uma grande embarcação, sucumbindo no poço do maior oceano do mundo. A sobrevivência lhe exige ainda 227 dias à deriva e em companhia de um tigre. E o mar não é uma realidade objetiva, mas um conjunto de possibilidades, frente à qual está. Irreversivelmente.

A experiência da vida escapa à possibilidade da narrativa linear. As escolhas reais, após a família são possibilidades onde estão o belo, como as religiões com as quais Pi se identifica. Depois vem a moça bonita que ele gosta de ver dançar e depois se afasta, por força da decisão patriarcal, que o leva para o maior dos cinco oceanos. E então começa um inferno, sem nenhuma relação com o da Divina Comédia, de Dante Alighieri. Ao invés de fogo, água – sem fim e com movimento, raios, chuva, vento, escuridão e solidão, até na calmaria – sem limite nem porto. Nem existencial.

O mais forte sinal da existência – forte, ruidoso e selvagem – é um tigre de bengala, o último a adentrar o recinto – amurado a estibordo, o lado direito de quem se encontra numa embarcação – do qual não pode sair pelo instinto de defesa frente às maiores forças da natureza. Dentro do barco uma força interna, movida pela necessidade de viver, e um conflito, estabelecido pela ‘necessidade’, poeticamente expresso no choro e pedido de perdão ao peixe que acabou de matar, para alimentar Richard Parker, o tigre personificado.

Tornar-se o coadjuvante é uma necessidade no palco em que o protagonista é um tigre. Se este não estivesse lá, Pi estaria sozinho. É a natureza selvagem como única companheira, da qual vem o sentido da luta pela vida e sem a qual a solidão é absoluta. Pi e Richard Parker precisam desesperadamente um do outro. Além disso, apressa-se a ler o manual do barco, resgata a caixa de alimentos do espaço felinamente vigiado, assume os ensinos religiosos ao orar a Jesus, demarcar território e meditar.

Para entender a sobrevivência do rapaz, precisei buscar o humano onde guarda as razões unificadas na sua fé. Deixei as tempestades do Pacífico profundo e voltei ao sertão mineiro, na pele de Riobaldo, de Guimarães Rosa, com quem descobri que ‘o sertão era para, aos poucos e poucos, se ir obedecendo a ele; não era para à força se compor. Todos que malmontam no sertão só alcançam de reger em rédea por uns trechos; que sorrateiro o sertão vai virando tigre debaixo da sela’. O adolescente frágil que sobrevive ao naufrágio se torna o professor universitário e narrador.

O relato da vida de Pi é uma bela metáfora da vida. Não é ‘didático’, mas ajuda os jovens a buscarem valores. Sua maior qualidade, no entanto, é a própria história – à qual se submetem os efeitos, que destacam o sublime, o risco absoluto e até o numinoso – muito bem contada, arremato antes de esquecer! As imagens dos animais no zoológico de Pondicherry, a mística e a estética nas celebrações rituais, a perda da família num naufrágio rápido e fatal, e a luta com o tigre e pela sobrevivência num bote em pleno oceano, ajudam a construir utopias, alimentam sonhos e  traduzem – sem dúvidas e sem dívidas – os extremos da condição humana.

http://www.youtube.com/watch?v=dF-MF4pk3mM

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