Antonio Carlos Ribeiro
Rio de Janeiro – O olhar de um adolescente sensível, que se adapta à condição da família e enfrenta todas as perdas – de forma violenta e brutal – é o tema de ‘Infância Clandestina’ (Infancia clandestina, dirigido por Benjamín Ávila, com Natália Oreiro, Teo Gutiérrez Romero, Benjamín Ávila e Ernesto Alterio, produzido por Luis Puenzo e roteirizado por Marcelo Müller, 112 min., Argentina, Espanha, Brasil, 2011, drama). Esse olhar é o gerador do relato traumático, o mesmo que subjaz as reações intempestivas e elabora as perdas.
O filme integra uma boa safra de filmes que tratam do tema das ditaduras latino-americanas, como o brasileiro O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias, 2006, de Cao Hamburger, e o alemão O Dia em que não nasci (Das lied in mir), 2010, de Florian Cassem, que mostram o impacto da repressão sobre a personalidade em formação. Com diferenças como a história que pode ser retomada, a que fica ‘amarrada’ ao relato e a sensação de que faltam relatos para que o tema seja encerrado.
O filme tem coragem de mexer com a ditadura, o tema tabu que quanto mais é tamponado, mais surge no discurso da mídia patética – que disfarça o fato de ter sido o principal sustentáculo – e ainda contando com o golpismo, assim como Beckett em Esperando Godot, ou da decadente elite que tenta a judicialização da política com vistas a administrar a sociedade e controlar os demais poderes, ou de partidos de perfil ‘udenista’, sem discurso nem articulação e dependentes das mídias editorializadas, reduzidas a folhetins de direita.
A película rediscute o tema pelo olhar de um menino, filho de militantes, que apoia e colabora com os pais, se recusa a cantar o hino nacional por distinguir cinismo e civismo que negam a humanidade, ter afetividade à flor da pele, amar a menina que o encanta e se negar a hastear a bandeira, sangrada pela ditadura. Atitudes que lembram o argumento da teóloga Marcela Althaus Reid ao lançar Indecent Theology e explicar que cresceu na ditadura com os militares falando em decência, o que a fez decidir: ‘prefiro ser indecente!’
Faz uma crônica do cotidiano da militância armada: o confronto com as forças da repressão, a fuga para se rearticular, o retorno para o campo de atuação, com moradia e trabalho na periferia, e os conflitos familiares. Neles transparecem as regras de segurança, o treinamento de guerrilha, os disfarces na atividade profissional, o comando e a integração dos militantes e a maneira de lidar com os que tombaram nos anos de chumbo.
O perfil do filme é o de filhos de militantes que relutam em entender, ou entendem e assumem a condição dos pais, por amor e que, invariavelmente, sofrem os solavancos do cotidiano, ao passo em que desenvolvem seu caráter de vítimas da ditadura assumida pelas elites, que tinham nos militares seus empregados, nos empresários os que a financiavam – uma TV somou concessões ao comprar emissoras falidas e apoiar o golpe, chegando a se dizer a 4ª maior do mundo – forçados a mentir e omitir despudoradamente, divulgar relatos fabricados nas casernas – mesmo sem nenhum nexo – descobrindo sua vocação na lógica prostituída do golpismo.
Infância Clandestina adota uma narrativa inquieta – de roteiro preciso, diálogos bem marcados e gestos intensos – do sofrimento à alegria, vindo de uma cinematografia bem elaborada, sem efeitos eletrônicos, chegando ao máximo dos quadrinhos, especialmente nos momentos de terror, a ponto de ser escolhido pela Secretaria de Cultura para representar a Argentina no Oscar.
O Brasil participa da obra – além da Espanha – como coprodutores de Infância Clandestina, e através de argentinos e brasileiros atuando como atores, roteiristas e diretor. Entre eles a atriz Mayana Neiva e o ator Douglas Simões integram o elenco, assim como o roteirista Marcelo Müller, que atuou com o diretor Benjamín Ávila. Estes estudaram juntos na Escuela de TV y Cine, de San Antonio de los Baños, em Cuba.
Além das boas relações vividas entre Brasil, este é também o território de onde retorna de Cuba à Argentina a família de militantes montoneros, composta do pai (Cezar Troncoso), da mãe (Natalia Oeiro), do menino Juan (Teo Gutiérrez Romero), e do tio Beto (Ernesto Alterio), para se reintegrar à luta contra a ditadura militar. O disfarce é o trabalho numa fábrica, onde produzem e vendem doces, e o menino Juan, autor da narrativa, se transforma em Ernesto e simula o sotaque próprio da província de Córdoba.
O diretor Benjamín Ávila diz que, para contar essa história, se inspirou em sua própria experiência de vida. Filho de uma "família clandestina", que lutou contra a ditadura militar argentina e não poupou os próprios filhos de sacrifícios. Sua mãe "desapareceu" após ser presa no fim dos anos 70. O ar ofegante do personagem Ernesto é o do próprio Ávila, que teve o corpo e a alma marcados pela clandestinidade da vida escondida, do nome falso e da violenta e constante repressão dos militares e agentes civis dos generais-presidentes.
A forte dramaticidade não volta apenas pelo figurino, o corte dos cabelos, o modelo dos automóveis, os diálogos tensos com a avó – a única que restou a Ernesto após voltar a ser Juan – mas nos ritos para treinar militantes, nas palavras de ordem e nos cerimoniais de lembrança e despedida dos ‘companheiros’, que o bispo católico d. Mauro Morelli lembra ser eucarística por marcar os que dividiram o mesmo pão e ‘caíram’ no confronto com agentes do Estado nos anos de chumbo.
A diferença básica de Infância Clandestina, na descrição das circunstâncias da tortura e da crueldade extrema, fica clara na última cena, ao ser abandonado em frente à casa da avó, após perguntar pela irmã de poucos meses e ser chamado de ‘hijo de puta’ pelo policial, e bater na porta. No simulacro de eternidade entre a pergunta: ‘quem é?’ e resposta seca ‘Juan’, o filme estanca, como o estampido dos ritos do maior massacre de civis do continente.
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