Antonio Carlos Ribeiro
O Bispo Julio Murray, da Igreja Episcopal Anglicana do Panamá e Presidente da Junta Diretiva do Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI), é uma pessoa calma e sorridente, dessas que parecem não ter passado em vão por situações de sofrimento, sendo capaz de enfrentá-las e elaborá-las em sua caminhada. Com um sorriso natural e o bom senso que a experiência pastoral lhe proporcionou, concedeu a seguinte entrevista à Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC):
ALC – As igrejas reproduzem um modelo estético com um comportamento europeizado, denunciou um grupo de teólogos no III Encontro Afro-cristão, realizado na Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Como o senhor tem lidado com este tipo de questão em sua experiência pastoral?
Bispo Murray – Antes de tudo, muito obrigado pela oportunidade de poder me dirigir aos leitores da ALC. Em nosso trabalho pastoral tratamos em primeira instância de valorizar os melhores exemplos que veem da cultura de onde a pessoa faz a missão. Aí temos encontrado certamente diferenças, porque se o que reproduzimos é o que nos tem atraído e feito pensar de alguma maneira no próprio, o local é um elemento que dá sentido. Parte da tarefa é então conhecê-lo e reconhecer que o que é local também é uma expressão e uma experiência que fala de Deus. Eu venho de uma área afro-descendente em que era impensável ter tambores nas igrejas. Mas quando nos demos conta de como chegaram estes tambores, nos demos conta de que era também um aporte cultural do lugar de onde vínhamos, com nossos ancestrais. Assim, para nós é importante que as pessoas possam conhecer um pouco a história de onde provêm estes modelos, e também reconhecer que localmente há modelos que também expressam a experiência de Deus e nos servem para evangelizar.
E, quando isto acontece, as pessoas reagem de maneira melhor à prática da fé e ao culto?
É. Como a evangelização é transversal, eles utilizam esses elementos locais para dizer: aqui também está a presença de Deus. E é na reversão que se faz então a evangelização. E a participação das pessoas tem um sentido maior de dignidade e de pertença, porque se está utilizando algo próprio – algo que faço – para poder comunicar realmente a experiência. O elemento é a dignidade da pessoa, que se busca localizar e se resgata. Também nos temos dado conta de que para os afro-descendentes a igreja representava o único lugar onde realmente se dava valor às experiências e às práticas que a pessoa trazia, ou seja, um espaço em que a pessoa chega a ser pessoa e é considerada pessoa. E quando traz seus elementos, sua espiritualidade, seus conhecimentos e sua prática, que não é necessariamente o que lhe foi imposto, é quando a pessoa retoma sua dignidade.
Essa experiência é recente. Quando lemos Cristo e Cultura, de Niebuhr, sabemos que seu pano de fundo não estabelecemos a relação com a situação cultural da América Latina. Como é a experiência de repensar a fé e a prática cristã a partir dessa experiência?
A experiência, antes de tudo, se dá quando alguém convida e permite que os grupos originários também tenham a oportunidade de poder compartilhar o significado de sua experiência de Deus. As tribos indígenas, com sua cosmovisão, como os grupos afro-descendentes, e certamente, nestes grupos temos encontrado expressões que mostram como a espiritualidade tem alimentado a esperança. São grupos que tem estado em resistência, mas não tem deixado para trás os elementos culturais de onde são. E esta é a prática: estar em contato com estas experiências lhes tem permitido resistir e ter esperança. É certo, é um elemento recente e, no entanto, teremos que buscar uma maneira que esteja em diálogo, com a tensão dialógica, mas é importante ir criando os espaços para que estes diálogos possam acontecer, e ver como este compartilhar de experiências e de ideias – de cultura – trazem elementos importantes que acompanham a perspectiva da missão.
De um século para cá, a partir da primeira Conferência de Missão, muitas coisas tem mudado, especialmente em relação à América Latina. O que é mais significativo nas diferenças históricas entre aquela época e os tempos atuais? O que o senhor destaca como avanços feitos nesta área?
Um é que neste momento houve o convite à presença de latino-americanos, e de países e expressões que não estiveram presentes em 1910. Ao dizer isso, creio que o desafio não está em dizer unicamente que os latino-americanos estão participando, mas também criar espaço onde eles possam compartilhar o que realmente representa a missão e os desafios que a missão está experimentando neste novo século. Creio que estas áreas são significativas das que se podia trabalhar um pouco mais, a partir da experiência de Edimburgo 2010.
Como é sua experiência em ambientes ecumênicos, e na própria comunhão anglicana, no que diz respeito a hermenêuticas específicas da América Latina, como as Teologias da Libertação, Indígena, Negra e Feminista, com os traços latino-americanos? Há resistências ou já há algum diálogo?
Bom, mais e mais, diante a resistência se pede que haja diálogo, e no diálogo é aonde se vai realmente por sobre a mesa as distintas abordagens que vem de cada experiência de Deus. O que temos visto é que a experiência tem impulsionado e forçado que haja diálogo, e isto é importante. A experiência de gênero, da mulher, tem aberto portas para poder fazer uma aproximação a partir da masculinidade e, realmente, já temos trabalhado com experiências das masculinidades hegemônicas, mas que também haja espaços em que as masculinidades sejam dadas segundo a masculinidade de Cristo, que toma em conta o amor, a ternura, a participação e o direito de ser pessoa. Realmente, a tensão tem dado espaço para que haja diálogo, mas não terminamos ainda, pelo que é necessário que sigamos dialogando, porque são algumas vozes que fazem falta, se não estiverem presentes e se não forem escutadas. Então, há que se exortar a que haja realmente a busca destas situações de diálogo, onde possamos escutar com respeito às distintas abordagens que vem das experiências de Deus, e ver nessa diversidade uma maneira de poder representar o que Deus quer para nós. E não é a uniformidade, mas a unidade na diversidade.
Nesta Conferência a presença latino-americana é relativamente pequena: 17 pessoas. Como a experiência vivida aqui em Edimburgo pode chegar às comunidades latino-americanas? E que elementos os delegados podem levar às suas igrejas comunidades, para estabelecer mudanças, na volta à sua casa?
Eu sinto que a presença de latino-americanos na Conferência de Edimburgo tem sido totalmente diferente da que foi em 1910. Mas me parece que, embora tendo uma presença, poderíamos talvez ter participação ainda maior para poder compartilhar as expectativas e os avanços que estão se dando na missão na América Latina. Eu considero que este seja um ponto de partida. Há algumas abordagens em que, a partir da América Latina, se deve seguir trabalhando e com as quais nos comprometer cada vez mais, sobretudo as que possam produzir resultado concreto, que realmente adiantem a missão. Quando falamos da experiência de missão na América Latina, em que se valoriza a abordagem dos grupos originários, esses são elementos totalmente novos, que realmente ajudam a avançar a missão no aspecto da inculturação. Hoje quando falamos da relação que se dá quando há uma situação que vem de fora, na qual o missionário já não vem do hemisfério norte, falamos da capacidade da América Latina de produzir missionários, ou seja, missionários sul-sul. Há um espaço que podemos ter para dialogar entre as experiências sul-sul, para que não tenhamos que entrar em outro espaço ou até competir entre nós, ao contrário, para poder ser solidários e reconhecer os valores que estão surgindo no sul, para adiantar a missão. Estes são aspectos que creio serem importantes! Em outro âmbito, tenho dito da busca e da construção da esperança. Em um momento em que se está vivendo com tanta desesperança, com tanta falta de segurança, como essa abordagem sobre a esperança é feita na América e no Caribe? São elementos que creio ser importantes e que podemos ir trabalhando. E minha esperança é que da celebração de evangelização e missão podemos identificar áreas concretas de coisas que queremos ir adiantando. Outro elemento importante é: como nós, a partir dos centros de educação teológica, vamos preparando homens e mulheres para sair a fazer missão? É um elemento não somente de ecumenismo, mas de como preparamos esta pessoa para fazer uma análise do contexto no qual se vai fazer missão, de como entrar, ler e conhecer o contexto, de como acompanhar uma pessoa na experiência de sua fé, que a possa levar um pouquinho mais adiante na construção do reino? E como nós fazemos, como igreja, diante dos temas da injustiça que estão se dando, junto nossos povos, que são povos pobres mas são povos crentes? Como essa experiência de conhecer a injustiça, de denunciá-la e de trabalhar também com as instâncias e os sistemas que a produzem é parte do desafio que nós vamos levando adiante? E sinto que a abordagem que a América Latina pode dar é nesta direção. O que pode nos levar ao diálogo são estas experiências, por temos vivido em meio a essas situações de morte e, somente com a ajuda de Deus e o poder do Espírito Santo, ver como essa situação se transforma em uma situação de vida.
O tipo de catolicismo latino-americano, espanhol ou português, é em todo caso tridentino, diferente da maior parte da Europa, que nos coloca diante de uma teologia diferente. E frente a esta, nossas comunidades evangélicas têm se fechado. Que motivações se pode levar para debater estes temas, mexendo nas situações que não podem ser mudadas, mas cuja mexida pode iluminar o presente?
Sinto que um dos acontecimentos que seguem iluminando o presente é o que se produziu no Vaticano II e segue falando a nosso contexto de hoje. A esperança é que possamos também criar espaços de confiança, de respeito, de onde possamos chegar à mesa, de distintas tradições, para buscar realmente e encontrar os pontos em comum, com os quais construir uma possibilidade de missão em comum. Mas isso só vai se dar realmente quando se der um ponto de encontro e um espaço de diálogo, para irmos nos conhecendo. Há lugares em que as tensões se dão quando pessoas e grupos não se conhecem. Mas creio que há um elemento muito importante do catolicismo católico romano que marcou uma pauta de mudança que seria interessante poder escutar e dialogar. As mesmas experiências da vida das igrejas na América Latina têm abraçado sua afro-indo-latinidade, como parte de quem são e da experiência de Deus. E a partir disso, se pode construir esta nova estratégia para poder proclamar o Evangelho. E não unicamente proclamar o Evangelho, mas proclamar o Evangelho de mãos dadas com o serviço da diaconia.