domingo, 28 de agosto de 2011

Os relógios do mundo não andam para trás

Antonio Carlos Ribeiro

Os seres humanos não conseguem reconhecer a essência totalmente diferente de Deus quando se consideram tão divinos e sentem a força do próprio Deus em si, mas apenas quando nada são além de seres humanos, que admitem suas debilidades e sua miséria. Quando deixam de ser deuses infelizes e orgulhosos e passam a ser verdadeiros seres humanos, permitem que Deus seja Deus, como disse acertadamente Lutero

Jürgen Moltmann


Introdução

O veleiro sueco Götheborg aportou em Recife (PE) em janeiro de 2007, com uma programação cultural a bordo, que inclui Såsom i en Spegel (Através de um Espelho - 1961, 87 minutos, 35 mm) , de Ingmar Bergman, levando o público pernambucano a mergulhar mais uma vez nos dilemas da existência e será brindado com imagens de um filme cult e novas perguntas sobre o sentido da vida. Estrelado por Gunnar Björnstrand, Harriet Andersson, Lars Passgård e Max von Sydow , o filme conta a estória da mulher que, afetada por crises de loucura, entra em conflito com a família durante as férias de verão numa ilha distante. O drama fica ainda mais envolvente com a trilha sonora de Johann Sebastian Bach e Erik Nordgren. Conhecido por compor a Trilogia do Silêncio, do conhecido cineasta sueco, Através de um Espelho conquistou um oscar de melhor filme estrangeiro em 1962.

O cinema vem de cinematógrafo, a técnica de projetar seqüências de fotogramas de forma rápida e sucessiva, criando a impressão de movimento (em grego, kino significa movimento, e grafos, escrever ou gravar). Criada pelos Irmãos Lumière no final do século XIX, essa técnica possibilitou a arte de produzir obras estéticas, narrativas ou não, dando ao cinema condições de tornar-se um forte meio de expressão dos sentimentos humanos, a partir da imagem em movimento e dos sons . O filme Den Goda viljan (As melhores intenções), rodado em 1992 e dirigido por Bille August, foi o mais comentado pela imprensa como o reencontro existencial com o seu pai, razão pela qual escolhi para esse diálogo.

Hans Küng é um teólogo bastante conhecido. Seja pelos clássicos Die Kirche (A Igreja) e Unfehlbar? (Infalível?), entre as dezenas de livros e centenas de artigos e conferências; seja pela independência, coerência e transparência de suas propostas; seja pelo meio século de resistência no sacerdócio, na docência e na produção teológica; seja pela punição que lhe retirou a missio canonica. Foi convocado pelo Papa João XXIII em 1960, para ser consultor oficial do Concílio Vaticano II. Com as marcas de uma cultura teológica invejável e uma persistência “suíça”, que o identificam com teólogos como Hans Urs von Balthasar e o reformado Karl Barth, ele celebrou seu jubileu de ordenação, fazendo uma conferência na Alemanha, publicada sob o título Woran man sich halten kann (Por que ainda ser cristão hoje?), que tomei por base para essa conversa.

Ingmar Bergman e o cinema transcendental

O nome de Ingmar Bergman é perenemente associado ao cinema transcendental . Sua produção, como mostra a filmografia, compõe um dos mais ricos e existenciais momentos da história do cinema. Após ter se apropriado da linguagem para realizar um conjunto significativo de filmes, por vezes com até três títulos num ano, esse diretor abordou temas inerentes à condição humana – como desejo, morte e religiosidade –, dilatando as possibilidades dessa linguagem, explorando os recursos disponíveis (dramaturgia e tecnologia) até seu limite e, sobretudo, transcendendo a própria experiência cinematográfica.


Interessou-se por teatro durante o tempo de estudos na Universidade de Estocolmo, voltando-se mais tarde para o cinema. Ao escrever a peça de teatro Morte de Kasper, iniciou a carreira em 1941, e, depois escreveu o primeiro argumento para o filme Hets, em 1944. O primeiro filme, Kris, foi rodado em 1945. Desse modo, começou uma sequência de filmes que lidaram geralmente com questões existenciais como a morte, a solidão, as grandes perdas e a fé . Suas influências literárias vêm do teatro de Henrik Ibsen e August Strindberg.

Conta-se que muito antes de estrear na telona, já havia descoberto o cinema como forma de expressão. No natal de 1927, aos nove anos, cedeu à tentação, ao ver o irmão presenteado com um projetor e propôs uma troca que no futuro mostrou-se definitiva para sua vida. Entregou um exército de chumbo em troca do cinematógrafo. Era sua primeira relação com o cinema.

Filho de pastor luterano, recebeu uma educação marcada pelas contradições da época e do lugar. A Europa, que nos parece algumas vezes irmã, maior e modelo, construiu seu patrimônio com os subprodutos, especialmente existenciais, do qual só recentemente temos aprendido a nos desfazer . Repressão autoritária, baseada em conceitos relacionados ao pecado, confissão, castigo, perdão e graça. Essa, em muito pequena escala. Indulgência, como aparece nos seus filmes, em alguns dos quais com vários acentos autobiográficos, especialmente vivências e sentimentos como vergonha ou humilhação, tão explorados em seus filmes.

Discípulo de Victor Sjostrom, um dos patriarcas do cinema sueco, homenageado em Morangos Silvestres, ele herdou também a compreensão da natureza como elemento de sustentação dramática, como em Monika e o Desejo, filme que despertou o interesse de Woody Allen por ele. Lembrado por suas obsessões mais freqüentes como o passar do tempo, a morte e a impossibilidade de comunicação, estão presentes em diversas obras, com destaque em Luz de inverno, O Sétimo Selo, O Silêncio, Persona e outros. Mas, os críticos observam que o conhecimento aprofundado de sua obra revela talentos múltiplos. O Olho do diabo, Sorrisos de uma noite de Amor e Para não falar de todas essas mulheres são filmes de leveza e bom-humor surpreendentes, sobretudo por serem do mesmo autor de obras como Vergonha, Face a face e Da Vida das Marionetes.

Com experiência teatral, por ter trabalhado como diretor do Teatro Municipal de Götheborg e do Teatro de Malmoe, o diretor trabalhou em seus filmes com um elenco que praticamente não se alterou: Harriet Andersson, Erland Josephson, Max Von Sydow, Ingrid Thulin, Liv Ullman e Gunnar Bjornstrand. Eles são os que emprestam sua imagem a essa obra feita à base de rostos, gritos, silêncios e sussurros. Além dos vários casamentos, viveu um caos jurídico-econômico ao ser acusado de burlar o fisco, em meados da década de 70, sendo condenado a viver recluso na ilha de Faro, de onde saiu apenas para encenar suas peças teatrais ou realizar especiais para a tevê.

Comparável a enfoques da filosofia existencialista, o cinema de Ingmar Bergman evoluiu de uma angustiada busca do sentido da vida para uma abordagem original dos problemas suscitados pelos relacionamentos humanos . O ambiente religioso em que passou a infância influenciou sua formação moral e intelectual. Sentiu-se seduzido pelo cinema já na adolescência. Mas, começou dedicando-se ao teatro, como tantos outros cineastas.

Em 1949, ao realizar Fängelse (Prisão), passou a lidar com dois temas. Um, de caráter filosófico, indagou sobre questões como a existência de Deus ou do bem e do mal; outro, satírico, se concentrou nos problemas da falta de comunicação entre as pessoas. Em outra fase, no ano de 1956, afirma os críticos que ele procurou desesperadamente uma revelação que o ajudasse a compreender a vida, em toda sua extensão, e o mistério da morte. O filme mais representativo de Bergman, na época, foi Det Sjunde Inseglet (O sétimo selo), alegoria ambientada na Idade Média, com que obteve fama mundial.

No mesmo ano conseguiu grande sucesso no festival de Cannes com Sommarnattens leende (Sorrisos de uma noite de verão). Dessa fase são também Ansiktet (O rosto), Jungfrukällan (A fonte da donzela) e Sasom i en spegel (Através de um espelho). Em Viskingar och rop (Gritos e sussurros) e Herbstsonate (Sonata de outono) intentou evitar sua visão angustiada da realidade e ofereceu uma alternativa esperançosa às protagonistas femininas, frequentes em seus filmes e sempre de fundamental importância. Os sucessos acumulados ao longo de sua carreira culminaram em 1983 com a obtenção do Oscar para o melhor filme estrangeiro, por Fanny och Alexander (Fanny e Alexander).

O cinema de Bergman não trouxe grandes novidades e nem os chamados efeitos especiais que vão marcar o fim do século XX, mas sua excelente direção de atores e a profundidade filosófica dos temas que tratou o transformaram numa das figuras mais destacadas do cinema mundial. Sua análise angustiada da situação humana nada perdeu da intensidade com os anos. A progressiva eliminação dos elementos dispersivos de adorno permitiu que seus filmes constituíssem um grande drama abstrato sobre a relação do homem com seus semelhantes e, talvez, com Deus.

Bergman lida com a tentativa do homem para definir a própria personalidade, removendo as muitas máscaras para ver que rosto surge por trás. As imagens do criador como ator ou como mágico retornam aqui e ali em sua obra. Por vezes, ele mesmo incorpora facetas de pensador e de ator, de pregador e de charlatão. Ele consegue fundir todos os papéis para criar um artista de grande força e individualidade. A aparência enevoada de seus filmes, especialmente antes de usar os efeitos da cor, nas imagens do ambiente físico, e no sentido existencial, para descrever os sentimentos humanos, garantiu-lhe a realização de um estilo de inconfundível expressão.

Conseguiu demonstrar a inquietação com a chegada de um regime totalitário em O Ovo da Serpente, expressão que cunhou e é a usada ainda hoje para falar do pré-nazismo. Em Saraband, retomam-se seus temas principais: o sofrimento, a perda da vida, a morte é o que realmente move esse diretor. A principal personagem não é Anna, a nora falecida de Johan, a mãe de Karin, a mulher de Henrik. Todos os personagens gravitam em torno dessa presença ausente. Aposentou-se em 1983, após ganhar o Oscar.


As melhores intenções

O filme As melhores intenções (Den Goda viljan), dirigido por Bille August e exibido em 1992, conta a história de vida dos pais de Ingmar Bergman. Henrik Bergman é um pobre estudante de teologia em 1909, que se apaixona por Anna Åkerbloom, a filha de uma rica família de Uppsala. Após o casamento, Henrik tornou-se pároco no norte da Suécia. Após poucos anos, Anna não pôde ficar vivendo num condado rural com pessoas rudes e sem educação formal. Ela retorna a Uppsala e o marido fica no norte.

Esse homem muito piedoso, severo e com pequeno senso de humor, parece não ter tido nenhum problema também com o sexo pré-marital, com a namorada que tinha e com a mulher por quem se apaixonou, mãe de Ingmar. Ao mesmo tempo, Henrik é um defensor intransigente dos trabalhadores pobres, chegando até mesmo a ceder o templo para uma reunião do sindicato. O conflito se acentua quando um industrial, membro da comunidade, o denuncia ao bispo e fica ainda mais irado quando o pastor não sofre punição, por ter uma razão legítima.

Bergman chega a narrar o atendimento pastoral que seu pai-pastor presta à rainha da Suécia em crise de depressão e o convite para trabalhar como capelão num hospital em Uppsala. Nesse momento, o cineasta parece superar suas dores e começar a compreender o seu pai, perceber nele as inconsistências e a grande dificuldade de expressar emoções. Esse conjunto de fatos que cercam a atividade pastoral, numa sociedade rica e com evidências da decadência europeia, especialmente para descobrir como lidar com os movimentos sociais e trabalhistas da época da revolução de fins do século 19 e primórdios do século 20. Da mesma forma, a nova moralidade que pode ser aceita com maior facilidade hoje, não o era naquela época.


Filmografia de Bergman

Torment (Hets) - 1944
Crise (Kris) - 1945
Chove em Nosso Amor (Det Regnar paa Vaar Kaerleck) -1946
A mulher sem face (Kvinna utan ansikte) - 1947
Um Barco para a Índia (Skepp till Indialand) - 1947
Música na Noite (Musik i mörker) - 1948
Porto (Hamnstad) - 1948
Eva - 1948
Prisão (Fängelse) - 1949
Sede de Paixões (Torst) - 1949
Rumo à Alegria (Till glädje) - 1949
Isto não aconteceria aqui (Saat händer Inte här) - 1950
Juventude, divino tesouro (Sommarlek) - 1951
Divorciado (Fränskild) - 1951
Quando as Mulheres Esperam (Kvinnors väntam) - 1952
Mônica e o Desejo (Sommaren med Monika) – 1952
Noites de Circo (Gycklarnas Afton)
Uma Lição de Amor (En Lektion I kärlek) - 1954
Sonhos de Mulheres (Kvinnodröm) – 1955
Sorrisos de Uma Noite de Amor (Sommarnattens Leende) - 1955
O Sétimo Selo (Det Sjunde Inseglet) - 1956
Morangos Silvestres (Smultronstallet) - 1957
No Limiar da Vida (Nära Livet) - 1957
O Rosto (Ansiktet) - 1958
A Fonte da Donzela - (Jungfrukällan) - 1959
O Olho do Diabo (Djavulens Oga) - 1961
Através de um Espelho (Saasom I em Spegel) - 1960
Luz de Inverno (Nattvardsgästerna) - 1962
O Silêncio (Tystnaden) - 1962
Para não Falar de Todas Essas Mulheres (For att inte tala om alla dessa kvinnor) - 1963
Quando Duas Mulheres Pecam (Persona) - 1966
Stimulantia - 1967
A Hora do Lobo (Vartimmen) - 1968
Vergonha (Skammen) – 1969
Faro (Documentário) (Farödokument)- 1969
O rito (Ritten) – 1969
A Paixão de Ana (En Pasion) - 1970
A Hora do Amor (Beroringen) - 1971
Gritos e Sussurros (Viskningar och rop) - 1973
Cenas de um Casamento (Scener ur ett äktenskap) - 1974
A Flauta Mágica (Trollflöjten) - 1975
Face a Face (Ansiktet mot Ansiktet) - 1976
O Ovo da Serpente (Das Schlangenei) – 1977
Sonata de Outono (Hortssonat) - 1978
Da Vida das Marionetes (Aus dem Leben der marionetten) - 1980
Fanny e Alexander (Fanny och Alexander) - 1982
Karins ansikte - 1983
Depois do Ensaio (Efter repetitionen) - 1984
Les Deux Bienheureux (De tvä saliga) - 1986
Diário de uma Filmagem (Dokument: Fanny och Alexander) - 1986
Markisinnan de Sade – 1992
As melhores intenções (Den Goda viljan) – 1992 (Dir. Bille August)
Backanterna - 1993
Sista skriket - 1995
Larmar och gör sig till - 1997
Bildmakarna - 2000
Anna - 2002
Cenas de um casamento 2 (Scener ur ett äktenskap 2) – 2003


Hans Küng: Cristo é quem faz que isso seja possível para mim e por isso creio nele

Küng é um importante teólogo católico romano que se tornou conhecido por sua crítica ao dogma da infalibilidade papal e das posturas do Vaticano com relação ao celibato, à ordenação de mulheres e ao ecumenismo. Ele nasceu em 19 de Março de 1928 em Sursee, cantão de Lucerna, Suíça. Entrou para vida religiosa, estudou na Universidade Gregoriana em Roma e em Paris, sendo ordenado sacerdote em 1954. Em 1957 concluiu seu doutorado em teologia com a tese Justificação, em que trata da questão da justificação pela fé.

Tornou-se professor de teologia da Universidade de Tübingen (1960-1996) na Alemanha, onde também dirigiu o Instituto de Pesquisas Ecumênicas, a partir de 1963. Teve papel fundamental no Concílio Vaticano II. Um dossiê contra ele, iniciado em 1957, foi interrompido pela nomeação como peritus (consultor teológico) pelo Papa João XXIII, condição a partir da qual ajudou na redação das conclusões do Concílio que renovou áreas fundamentais do ensino e das práticas católicas. Logo após a conclusão do Concílio pelo Papa Paulo VI, a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé retomou o dossiê e abriu um processo para cassar a cátedra de Küng e tentar impedir a publicação de seus livros.

Desde os anos da década de 1960, Küng foi um dos críticos mais severos da Infalibilidade Papal. Ele publicou em 18 de janeiro de 1970, centenário da declaração da infalibilidade papal, o livro Infalível?,em que esmiuçou e rejeitou o caráter de infalibilidade do Papa e da Cúria. "Acredito que o importante para um teólogo é expressar as preocupações e esperanças atuais do povo à luz do Evangelho. Assim ele também será levado a sério em Roma", disse Hans Küng, numa entrevista à Deutsche Welle em meados dos anos 70, quando o conflito parecia ter se acalmado.

Em 1979 publicou nos principais jornais o artigo Um ano de João Paulo II, demonstrando que ele só aceitou nominalmente o Vaticano II, mas na substância fortaleceu a centralização curial, impôs o culto à personalidade, endossou a exclusão das mulheres do sacerdócio e a permanência do celibato para os sacerdotes. Como conseqüência desse artigo e de sua crítica à infalibilidade, o Papa cassou sua licença para lecionar teologia católica. Küng queria, ao menos, que o processo fosse justo. Reivindicava o direito de ver os documentos e à assistência jurídica. "Um processo que não respeite esses direitos básicos é contra o Evangelho", disse. O teólogo não teve possibilidade de se defender em Roma e, pouco antes do Natal de 1979, o Vaticano lhe cassou a licença de falar em nome da Igreja.

Só não foi afastado da docência teológica de Tübingen, por causa da legislação alemã, dedicando-se ao ensino de Teologia Ecumênica. Pode continuar seus estudos sobre ecumenismo, em particular com relação ao Luteranismo. Já em sua tese de doutorado, tinha pensado na possibilidade de um acordo teológico entre catolicismo e luteranismo, que foi assinado em 1999. Aposentou-se como professor em 1996 e a seguir foi eleito presidente da Fundação Ética Global (Weltethos), de Tübingen.


Longe de ficar reduzido ao silêncio, prosseguiu sua tarefa esclarecedora, empreendendo dois grandes projetos: tratar da situação religiosa atual e de uma ética global. Realizou estudos sobre as tradições cristã, judaica, islâmica, hinduísta e budista e publicou obras sobre a ética mundial. "A globalização requer uma ética mundial que supere as linhas de conflito entre nações, povos e religiões. Se a globalização for apenas um instrumento para a maximização dos lucros, preparem-se para uma séria crise social", advertiu no Fórum Econômico Mundial (1997, Davos, Suíça).


Razões por que ser cristão

Essa pequena obra de Küng escalda questões da atualidade no ensino de Jesus de Nazaré e propõe que o cristão que se orienta por ele e pensa sua fé com independência encontra razões para permanecer nela. Suas ideias partem da queixa comum sobre as (des)vantagens de ser cristão, só superada quando se recobra o sentido da liberdade, da não-violência, do amor e da paz. E conclui que nosso tempo não sofre falta de organização, mas de orientação.

Uma sociedade civilizada e um Estado supõem uma ordem de Direito, que não podem existir sem uma consciência ou ética moral, que por sua vez exigem valores, atitudes e normas básicos. Não se pode dispensar a religião, por não existir nenhum dever incondicional para determinado agir sem uma autoridade, com a qual se possa exigir obediência incondicional ao absoluto. Esses valores sempre foram oriundos de critérios cristãos. Por isso, assumindo o ônus teologal da verdade, opportune importune, é difícil contradizer os que esperam outra atitude do cristianismo, cujas estruturas eclesiais foram descredenciadas com legalismo, oportunismo, arrogância e intolerância.

Se o deus desconhecido (theós agnostos) dos Atos dos Apóstolos é sem rosto, o da fé judaico-cristã é concreto, revelou-se na história, não devora os que se aproximam, nem é ambivalente, confuso, hipócrita, nem de dupla face, mutável ou imprevisível. É um Deus a favor da humanidade, além do qual não há outro, primeira e última realidade para judeus, cristãos e muçulmanos, amigo do ser humano e parceiro a quem podemos dirigir a palavra. É o sentido oniabrangente e onipenetrante das coisas, cuja liberdade absoluta não restringe, mas possibilita, capacita e conserva a liberdade relativa do mundo, pelo que está na sua origem e no seu final.

Quem crê Nele encontra, pela compreensão, a razão. Em sua presença pode-se rezar, oferecer sacrifícios, dobrar os joelhos respeitoso, cantar e dançar, como ensinou Heidegger. A orientação que nos falta vem de Jesus de Nazaré, figura histórica com rosto humano, que agia em nome Dele, pai do filho pródigo, em vez dos piedosos e de quem se diz justo desde o princípio, que também é mãe e dá, ao invés de só exigir, que não humilha mas reergue, não condena mas perdoa, não castiga mas liberta, que faz valer a graça, que se alegra mais com a conversão do único injusto do que pelos 99 justos, que deseja que sejam abolidos os limites entre bons e maus, amigos e inimigos, distantes e próximos, e que não morreu no nada, mas em Deus, e por isso está vivo através de Deus e com Deus.

O Deus do começo é o mesmo do fim. O importante é o seguimento. Em tudo que ele fez e sofreu, encarnou a causa de Deus. Ele chama ao seguimento na correspondência, orientado por Ele, definindo o que é ser cristão. Na cruz dele encontramos a resposta à pergunta: por que somos honestos, delicados e, se possível, bondosos, mesmo se enfrentarmos prejuízos, formos alvo da esperteza e brutalidade dos outros? No seu Espírito se manifesta a nós um sentido e objetivo último da vida e da história, a realização do ser humano e da humanidade. Na cruz, nossa existência crucificada adquire o sentido que o sofrimento não pode desfazer. Isso não é atalho para fugir ao negativo, mas habilidade para perseverar sem queixas, nem auto-comiseração, caminhar através do negativo para o futuro, ao qual nos dirigimos por nossa vida e sofrimento. Humanismo radical não inclui apenas o verdadeiro, o bom e o belo, mas o falso, o mau e o feio, o por demais humano e o desumano.

Resposta à crise de orientação, Cristo é a alternativa entre a rebeldia revolucionária e a covardia moral, entre o radicalismo hipercrítico e a acomodação descriteriosa. Seguir essa orientação faz as pessoas serem mais humanas e filantrópicas, e as igrejas, podem voltar a ser abertas, acolhedoras, hospitaleiras e autenticamente confiáveis, trazendo esperança.

Não haverá avanço no ecumenismo se não houver espírito reto e verdadeiro. Ele exorciza: “sai, espírito imundo, que separas e divides, que arrastas e atrasas! Afasta-te das Igrejas e de seus centros de comando, das faculdades e institutos, dos grêmios e comissões. Afasta-te dos corações dos homens, do nosso coração. E deixa o espaço livre! Dá lugar ao Espírito Santo, que, forte e suave a um só tempo, reconcilia, une e reúne, e que é força de Deus!” É preciso sair da idade média, apesar das fórmulas mágicas e do lixo barroco, e se deixar orientar por Cristo, mantendo o olhar no Reino de Deus e no próximo.


Bibliografia básica de Hans Küng

A Igreja Católica – História Essencial
Teologia a Caminho – Fundamentação para o Diálogo Ecumênico
Religiões do mundo – Em busca dos pontos comuns
El cristianismo. Esencia e historia
Grandes pensadores cristianos. Una pequeña introducción a la teologia
Teología para la posmodernidad
Structures of the Church
Unfehlbar? / Infallible? An Inquiry
/ Infalível?
Why Priests?
On Being A Christian
Does God Exist? An Answer For Today
Eternal Life?
Why I Am Still a Christian / Woran man sich halten kann
Por que ainda ser cristão hoje?
Paradigm Change in Theology
Reforming the Church Today. Keeping Hope Alive
Die Kirche / The Church
/ A Igreja
Yes to a Global Ethic / Projeto de ética mundial: uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana
A Global Ethic for Global Politics and Economics
Women in Christianity
Tracing the Way. Spiritual Dimensions of the World Religions
The Catholic Church. A Short History
Der Anfang aller Dinge. Naturwissenschaft und Religion


Conclusão: o sentido da busca do sentido

Dialogar entre dois saberes é sempre complicado. Essas são as primeiras polaridades em que se assentam o diálogo deste trabalho: os autores (um cineasta sueco, de formação luterana, e um teólogo católico); as formas de expressão (a arte, o cinema, e a teologia e seus labirintos eclesiais); e o amor e o sofrimento (como base existencial para a mensagem). A crise existencial das perdas, especialmente a da mãe, e os vários casamentos desfeitos, de Bergman, se polariza com o labor teológico, o pensamento que avançou para além do balizamento magisterial, do direito de expressar-se, mesmo com os preços a serem pagos, e da fidelidade expressa na manutenção do sacerdócio por mais de meio século, que não imaginou que teria sequer de vida.

No caso de Bergman, logo se percebe que As melhores intenções, fortemente dependente dos demais filmes, é um é o reencontro com o pai. Para quem assistiu a alguns, este filme auto-biográfico fez grande sentido. Trechos de outras películas retornaram imediatamente para os cinéfilos e amantes da sua obra, particularmente Fanny e Alexander. Mesmo não tendo dirigido As melhores intenções, ao escrever o roteiro ele conseguiu mostrar parte significativa das vidas da mãe e da personalidade do pai. Diferente do cruel e super-zeloso pregador de Fanny e Alexander, nesta obra o pai-pastor é um ser humano dividido e cheio de dicotomias. Ao que parece, ele se rende ao amor, após gastar toda a vida e trabalho em conflito com o pai-pastor. Finalmente pôde, pelo sofrimento, se preparar para o reencontro com essa figura a quem nunca deixou de amar, mas com quem nunca se entendeu.

No caso de Küng, a relação envolve afetividade e vocação. Ele analisa a sua Igreja, e diz que a partir dos anos 60 ela foi aberta para fora e fechada para dentro, lutou contra a pobreza mas proibiu a pílula, defendeu os direitos humanos mas intimidou e puniu teólogos, se abriu ao mundo mas discriminou as mulheres, fez visitas ecumênicas mas acentuou o marianismo e fechou a questão da infalibilidade. No balanço de esperanças e desilusões, êxitos e derrotas, homens e mulheres deixaram a vida religiosa, caíram a frequência aos cultos, os batismos e os casamentos, e a crise vocacional ficou dramática.

Protagonista desses embates no último meio século, ele dá as razões da sua força: porque não se trai os sonhos da juventude, porque nossa visão não deixa de ser verdadeira na adversidade, porque não se muda a atitude básica e porque caráter, convicções e honestidade são deveres morais fundamentais. Foi capaz de resistir ao entender que êxito não se traduz em números, que não foi provado acima das forças e sempre recebeu o que precisou para resistir, porque na impotência se manifesta o poder, na fraqueza a força, na pequenez a grandeza e na humildade a auto-confiança. Os relógios do mundo não andam para trás e o evangelho é mais forte que a incapacidade humana. Lembrou ainda que precisou de saúde física e psíquica, humor, leveza e pessoas que não o abandonaram na hora da necessidade. O importante não são os resultados, mas que sempre se preserve a confiança, inabalável e incondicional.

Os dois fizeram história, conquistaram corações e mentes, desafiaram o establishment e angariaram respeito. Seu segredo pode ser resumido nos verbos amar e trabalhar, para lembrar um conceito de saúde de Freud. Um seguiu o impulso das dores pessoais e existenciais; o outro, orou, discerniu e lutou titanicamente para fazer-se ouvir, e na sua voz, o clamor de muitos. Receberam muito, deram muito de si, dedicaram-se à causa do ser humano e deixaram um legado monumental.

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