quarta-feira, 29 de outubro de 2014

O jornalista e a falácia do mensageiro

Jornalistas experientes e responsáveis deveriam publicar
- como fizeram os da Veja - repercutir e divulgar boato de
criminoso condenado - como os da Globo, Folha e Estado?

Sylvia Debossan Moretzsohn*
      
A tentativa de influenciar o voto dos eleitores indecisos, e mesmo de reverter a decisão de quem já havia feito sua escolha, através da produção de um bombástico factoide de última hora, já foi suficientemente analisada por Luciano Martins Costa em seus mais recentes artigos neste Observatório (ver aqui e aqui). Mas a última edição da revista Veja teve, além de tudo, o poder de ressuscitar a famosa metáfora do mensageiro, através da qual os jornalistas costumam isentar-se de responsabilidade pelo que divulgam.



Foi exatamente este o argumento utilizado pela revista, ao responder à contundente manifestação da presidente Dilma Rousseff, então candidata à reeleição, em seu último programa eleitoral, no qual acusava a publicação de haver cometido um crime (ver aqui). Foi também este o argumento disseminado em comentários nas mídias sociais.

Desmontar essa falácia é uma providência fundamental para esclarecer o papel, a relevância e as responsabilidades do jornalismo.

O jornalista, um mediador

Há alguns anos, o jornalista português José Vitor Malheiros, no Público, ofereceu uma excelente síntese para esse esclarecimento:

Os jornalistas não são mensageiros porque o seu papel não consiste em transportar de um lugar para outro – das folhas de um processo para as páginas de um jornal, por exemplo – uma dada mensagem. Um jornalista não é um estafeta reduzido a um papel de mero transporte, nem um pé de microfone. (...) os jornalistas, sendo mediadores porque estabelecem uma mediação entre leitores e sociedade, são produtores de informação e possuem o dever de escolher, filtrar e validar as notícias que dão – a partir da informação que recolhem activamente ou que recebem passivamente – e até de traduzir, descodificar, explicar, enquadrar ou mesmo comentar as notícias que o exijam. São os autores das notícias.

Como se vê, o trabalho do mediador tampouco implica neutralidade: exige critério para filtrar, no meio do turbilhão de informações, aquilo que tem credibilidade, substância e relevância para ser publicado. Exige fazer escolhas, como é próprio da atividade jornalística.

Um mentiroso como fonte

Ancorado no que pejorativamente passou a ser conhecido como jornalismo declaratório, o denuncismo já foi objeto de inúmeras críticas. Baseia-se nisso que certa vez chamei de “jornalismo de mãos limpas”: alguém faz uma denúncia, a imprensa publica; o denunciado protesta, a imprensa publica. Bastaria, portanto, referir as informações – verdadeiras ou falsas, pouco importa – às fontes, e lavar as mãos: quem as divulga não teria nada a ver com isso.

É um raciocínio que não resiste à mínima reflexão: para dar um exemplo extremo, concordar com ele é aceitar que a imprensa se comportou de maneira perfeitamente ética no caso Escola Base.

No que diz respeito às denúncias de Veja, (in)devidamente antecipadas no site do Globo na base do condicional – o doleiro “teria dito”, a revelação “teria sido feita” etc – e depois reproduzidas nos dois principais jornais paulistas, há outro aspecto a ser considerado: as acusações teriam decorrido de um acordo de delação premiada, pelo qual o preso se compromete a dizer a verdade, ou não obtém o benefício almejado. Logo, parte-se singelamente do pressuposto de que ele não mentiria. Por que aguardar a apresentação de provas, então?

Em sua coluna de 26/10, na Folha de S.Paulo, Janio de Freitas fornece um perfil do denunciante:

Dado apenas como doleiro, Alberto Youssef é mentiroso profissional. E seu negócio são importações mentirosas para exportar dólares como pagamentos. Sua atual busca de delação premiada, em troca de liberdade apesar de criminoso confesso e comprovado, não é a primeira. Voltou a ser preso, há seis meses, porque, desfrutando de liberdade concedida pela Justiça como prêmio por antigas delações, dedicou-se aos mesmos crimes que se comprometera a não repetir. A delação premiada e o acordo com um juiz foram ambos mentirosos.

Seria aceitável confiar numa fonte como esta? Mais ainda: seria lícito servir de porta-voz desse tipo de fonte e divulgar acusações de tamanha gravidade às vésperas de um momento decisivo para a vida política do país?

A tarefa de asseverar

Previsivelmente, a tendência de uma parcela do público não é indagar as intenções da revista, mas acolher as denúncias, porque “é evidente” que Lula e Dilma sabiam de tudo: o senso comum funciona precisamente no sentido contrário ao dos postulados do direito e se baseia na presunção de culpa.

Não seria demais assinalar, entretanto, que, se “é evidente”, nem haveria necessidade de investigação judicial. O mais grave, porém, é ignorar que casos de corrupção costumam ter ramificações importantes, embora as denúncias sejam sempre seletivas e, desta forma, publicadas com o objetivo de atingir determinados alvos, deixando outros envolvidos à sombra.

Tudo isso, claro, sempre em nome da “liberdade de expressão”, cujo abuso, uma vez contestado, é sempre condenado como tentativa de imposição de censura.

Num livro publicado originalmente há 20 anos (Pragmática do jornalismo, Summus), o professor Manuel Carlos Chaparro afirma que o ato de fala próprio do jornalismo é o de “asseverar”. Mais ou menos pela mesma época, o economista João Sayad escreveu breves mas preciosas “Notas sobre a imprensa” na Folha de S.Paulo (12/2/1993), em que comentava os métodos usuais na cobertura de economia:

Andam dizendo que tal instituição vai quebrar. Sim, é verdade, andam dizendo aquilo. Mas será verdade o que andam dizendo? Ou é verdade que andam dizendo mentiras?

É pela responsabilidade de distinguir entre verdade e mentira – e as mil e uma nuances entre esses extremos – que o jornalista preserva a sua dignidade. Confundi-lo com um mensageiro, além de falso, seria uma desonra que profissional algum deveria admitir.

*Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF)

domingo, 26 de outubro de 2014

Inclusão social vai melhor com Dilma

Nesse tempo de mais uma etapa de aprofundamento da mudança,
esse texto dá elementos para reflexão e firmeza na busca do futuro...

Renato Janine Ribeiro

As últimas décadas no Brasil são uma história de sucesso, ao contrário do que muitos dizem. Só que esse sucesso se deu de maneira bastante lenta, ao contrário do que muitos de nós desejaríamos.



Desde 1985 acumulamos vitórias. A primeira agenda democrática, como eu a chamo, foi a democratização das instituições, iniciada naquele ano, após uma luta de duas décadas capitaneada pelo PMDB. Assim foi que a minoria oposta à ditadura se tornou legião. Hoje, só um deputado, de todo o Congresso Nacional, é contra a democracia!

A segunda agenda foi a vitória sobre a inflação, que demorou mais ou menos 15 anos e que foi assumida pelo PSDB, com o Plano Real. Outro sucesso. Ninguém mais defende a volta da inflação.

A terceira agenda democrática é a mais difícil: a inclusão social. A luta contra a desigualdade começa em 1580, data da possível fundação do quilombo de Palmares. Mas a inclusão só virou política irrenunciável de Estado com Lula, a partir de 2003. O Bolsa Família e a recuperação do salário mínimo tiraram mais de 50 milhões de pessoas das classes D e E, caminhando para tornar o Brasil um país de classe média, como quer Dilma Rousseff.

Hoje ninguém concorre ao cargo de primeira mandatário da República sem elogiar os programas de inclusão social. Mas o motor sustentável da inclusão não são eles e sim o aumento real do salário mínimo, que subiu muito nestes anos, porém ainda precisa chegar à exigência constitucional de uma remuneração digna.

Quem tornou esse tema compromisso do Estado e da sociedade brasileiros foi o PT, que chega nesta eleição com a promessa de manter aumentos reais do salário mínimo.

A agenda da inclusão social está incompleta. Quanto mais excluída a pessoa, mais laborioso é integrá-la. Desde a escravização do primeiro índio até hoje, são 500 anos de estragos. Mudar isso é mais difícil que melhorar as instituições ou consertar a moeda.

Mas o PT cometeu erros. Um deles foi parar de disputar os corações e mentes da sociedade. Se Lula se elegeu em 2002, foi porque no plano ético a maioria tinha se aberto aos valores de solidariedade social: "Se a miséria dos outros o incomoda, você é um pouco petista", dizia um clipe de campanha.

Mas, uma vez no poder, o PT não elaborou o caráter moral da luta contra a miséria. Deixou a ética ser apropriada pela oposição, em que pese o telhado frágil dela. Deixou a oposição reduzir a discussão moral no país ao tema da corrupção, esquecida do grande imperativo ético do Brasil e do mundo que é o resgate da miséria. (É óbvio que têm de acabar tanto miséria como corrupção.)

Nossos partidos terão que se refundar nos próximos anos. Nenhum deles prioriza o que chamo quarta agenda democrática, a de junho de 2013, que afeta a classe média, mas também os pobres: a qualidade da educação, saúde, segurança e transporte públicos. Essas falhas são mais dos Estados e municípios que da União, mas a propaganda soube colar o descontentamento de 2013 na conta petista, não na dos governadores de oposição.

A quarta agenda traz os temas de amanhã. Quando não precisarmos de carro, plano de saúde, segurança particular e escola paga para termos qualidade de vida, nossa democracia terá um nível europeu.

Diga-se que o PT tem iniciativas estruturantes para essas áreas. O partido sabe dar escala a seus projetos de governo, isto é, fazer que não afetem só uma parte da cidade ou da sociedade, mas beneficiem a todos, inclusive a maioria de pobres.

Por ora, ainda não completamos a agenda da inclusão social. Para consumá-la, o PT continua sendo o partido mais capacitado. Como poderá ser –mas para isso precisará reinventar-se– para tratar da quarta agenda como algo que funcione para a sociedade como um todo.

RENATO JANINE RIBEIRO, 64, é professor titular de ética e filosofia política do Departamento de Filosofia da USP. É autor de "A Ética na Política" (Ibep Nacional), "A República" (Publifolha), entre outras obras

Fonte Folha de S. Paulo

domingo, 19 de outubro de 2014

Os evangélicos e pentecostais, as classes médias e a política

Antonio Carlos Ribeiro*

Os evangélicos talvez sejam o grupo social com maior dificuldade de elaborar as mudanças oriundas deste começo de século e milênio. As dificuldades não residem na ascensão de 36 milhões de brasileiros que saíram da miséria absoluta, nem na dos 22 milhões que passaram a integrar a classe média – classes sociais em que estão a maioria de seus membros – mas falhas graves no impacto social de suas propostas teológicas, gerando contradições nas decisões eclesiais e políticas das cúpulas das igrejas, com o consequente dano hermenêutico das mudanças em seu discurso.

Bancada Evangélica: orando e rejeitando projetos da cidadania

Se as mudanças na economia através dos pacotes de políticas sociais, com um elenco de programas tendo à frente o Bolsa Família – executados de forma interligada aos aumentos reais no salário mínimo – tiveram efeitos significativos sobre a economia brasileira, propagando-se depois em programas de estímulo ao emprego e renda, aos avanços monumentais na área da educação – o Ensino Fundamental passando a ter nove anos, o Ensino Médio sendo avaliado pelo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), e o Ensino Superior pelo Exame Nacional do Desempenho de Estudantes (ENADE) – no conjunto, foram as principais ferramentas responsáveis pela revolução na ascensão social e qualidade de vida dos brasileiros.

O crescimento dos pentecostais, embora já estabilizado, encontrou campo fértil de expressão nesta onda de desenvolvimento, inclusive na área social, política e econômica que, junto com o dos demais evangélicos, não se fez acompanhar pelo avanço do seu discurso sobre o sagrado – a teologia – incumbido de refletir, pensar a fé e fazer propostas diante desse conjunto de mudanças. Enquanto era minoria, mesmo ganhando visibilidade pela participação no Congresso que promulgou a Constituição de 1988, com troca de votos por emissoras de rádio e TV, e outras barganhas, não conseguiu diminuir a assimetria com os avanços da sociedade. Isso fez com que perdesse apoio nas tensões com a igreja católica e as religiões de matriz africana. O crescimento não teve eco no discurso.

Entre os pentecostais esse impacto foi mais forte. Por ser um contingente muito maior, com sua base composta majoritariamente do grupo chamado pelos sociólogos de classe média baixa, um grupo mediano da classe média intermediária e certa minoria, a classe média alta, em que se situam os dirigentes eclesiais que determinam sua teologia e assim fixaram os marcos do pensamento, associando o poder pastoral, o acesso à comunicação e a chegada ao poder político, mais concentradamente no poder legislativo. O número de candidatos pentecostais e neopentecostais às assembleias legislativas, Câmara dos Deputados e Senado no pleito atual foi expressivo. Bispos, pastores, missionários e apóstolos pulularam, parecendo um grande ‘concílio’, se o modelo fosse o católico.

Fonte: Mídia, Religião e Política

Ocorre que as já mencionadas mudanças na economia impactaram também as igrejas, balançando esse construto eclesial de aparência norte-americana e bases populares oriundas das contradições políticas das elites brasileiras. Com acesso a esses programas que propiciam uma ascensão independente da tutela religiosa, do clientelismo e do voto de cabresto, o controle da classe média alta sobre as classes médias intermediária e baixa no interior do grupo ficou mais difícil. A independência das classes médias intermediária e baixa propiciou uma independência ideológica e religiosa que agora gera impactos no processo eleitoral. 

Os traços ideológicos – que subsidiam a leitura da realidade política – destas classes médias emergentes são o outro componente. A classe média alta tem uma perspectiva mais próxima da visão das elites, mesmo que não façam parte dela. O que atenua seu sofrimento por não pertencer a ela são um conjunto de pequenas vantagens econômicas e sua expressão no comportamento, no consumo e na exibição, que a distinguem. Perfis como morar num bairro nobre, ter os filhos estudando em grandes universidades, frequentar clubes, vestir roupas de grifes famosas, viajar de avião e ter uma propriedade – mesmo que uma chácara – são fundamentais para distingui-la das demais classes médias. E o mais importante, suportarem sua condição social, fazendo o esforço possível para superá-la.

Essa expectativa sofre uma frustração com os avanços da economia e as conquistas das classes trabalhadoras. O fato dos filhos de trabalhadores chegarem aos cursos de graduação e pós-graduação das universidades federais – que encabeçam o ranking da formação acadêmica – e as famílias terem acesso a planos de saúde, adquirirem casa e carro, chegarem a postos de mando e viajarem para o exterior afetou profundamente o elemento psicológico distintivo do grupo. É o caso dos avanços e conquistas das classes médias intermediária e baixa que afetam a autoimagem da classe média alta. A onda de racismo nas capitais, especialmente as concentradas nas regiões sul e sudeste, contra negros – como estereótipo das etnias não classificadas como brancas – resulta dessa conquista social.

O impacto desse fato no processo eleitoral, mormente no segundo turno das eleições para os governos estaduais e federal, é revelador. Nos governos estaduais o dado mais flagrante é a influência do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e sua campanha de ódio em São Paulo, levando os eleitores a perenizá-lo no Palácio dos Bandeirantes, para contrapor sua incapacidade agora tácita de voltar ao Palácio do Planalto, por causa da crise econômica aguda da saída de FHC. Orando para as chuvas chegarem até novembro, evitando o nível crítico do consumo de água, diz a Sabesp. Outro fato, para dentro do universo religioso, foi o candidato evangélico Garotinho não voltar ao Palácio das Laranjeiras, mesmo tendo sido eleito com quase 700 mil votos na legislatura passada. Nos dois casos, as classes médias interferiram.

No caso da eleição para Presidente da República, a tensão passa do âmbito regional para o nacional. Estima-se que 67% da minoritária classe média alta vota no candidato Aécio Neves, para se vingar do governo cujas decisões destruíram os elementos distintivos de sua condição de classe. Pode parecer muito pouco, mas significa muito, especialmente para quem tem nele sua principal afirmação social, para não dizer a única. Por outro lado, os 52% de votos da classe média intermediária e os 53% da classe média baixa parecem sustentar a candidata Dilma Rousseff, inspirando a ênfase no amor e na verdade para o eleitorado ver os avanços conquistados.

O aprimoramento do discurso teológico das igrejas evangélicas e pentecostais, com mais qualidade informativa, pastoral e comunitária pode ter um elemento significativo nessa conjuntura. Pode-se argumentar que todos foram surpreendidos pela celeridade, que só o debate forçado pela campanha eleitoral visibilizou esse fato e que esse impacto pode plenificar essa reflexão para ganho da sociedade. Mas o fato inconteste é que o discurso teológico ficou assimétrico, não foi analítico e se perdeu em intervenções caricaturais e pontuais. E pode abrir um nível importante de intervenção das Ciências da Religião, por sua visão de conjunto, capacidade de reflexão, superação de fronteiras e pró-atividade no debate de temas religiosos na sociedade.

* Jornalista, teólogo e professor (Doutor em Teologia, Pós-Doutor em Letras (PUC-Rio) e Pós-Doutorando em Letras (UFT-Capes)

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Mais evangélicos chegam à Câmara dos Deputados

Antonio Carlos Ribeiro*

A presença dos evangélicos no mundo político-partidário brasileiro tem se tornado frequente e visível. Com a expressiva votação, fortemente direcionada para o Poder Legislativo estadual e federal, como neste pleito. A consistência e abrangência dessa presença só mostra disparidades no quesito ‘distribuição entre as denominações’, com nítido destaque para as pentecostais e neopentecostais. Da que tem maior número de templos, pastores e membros até as que têm sua presença concentrada nas mídias radiofônica e televisiva.



Nesta eleição, recente e já consumada, salta aos olhos o poder adquirido pela Assembleia de Deus, com 13 deputados federais, seguida de longe pela Igreja Universal do Reino de Deus com seis – somados ao segundo maior conglomerado de mídia televisiva – a Igreja Batista com quatro, as Presbiteriana, Evangelho Quadrangular e Mundial do Poder de Deus com três, e as demais, com apenas um parlamentar, integrantes de uma rede que partilha visão de mundo – com acentos e atenuantes – a relação com um poder midiático crescente, mantida com o grupo religioso e para dentro da sociedade, hoje já sob menor pressão do que a vivida por Benedita da Silva, quando iniciou a carreira como vereadora na cidade do Rio de Janeiro.

Essas características as distinguem, do ponto de vista da crônica urbana – como o homem de terno escuro com a bíblia debaixo do braço e a mulher de cabelos e vestidos longos, como observou o antropólogo Rubem Cesar Fernandes, já nos anos 80 –, da social, ainda sofrendo discriminação enquanto crescia sorrateiramente, assim como os maometanos na Europa,  e da econômica, com templos monumentais em bairros centrais e de alto poder de consumo, superando a estética litúrgica dos shoppings, atuais templos do consumo, às quais se soma a ascensão social e o poder decisório, essenciais à visão mística, que substitui a moralidade na vida privada (o religioso) e na pública (o voto em plenário), cuja junção eleva o ato acima do juízo da sociedade. E dos cidadãos.

A ascensão mesma deste grupo, direta ou indiretamente resulta da ascensão de 37 milhões de pessoas da miséria para a classe média baixa e desta para a classe média alta, aparentemente sem terem tido tempo de elaborarem as mudanças. Um aprendizado que partidos populares como o PT ainda devem a esse grupo humano é o de entender que eles mesmos resultam desse esforço, efetivado a partir de 2006. Isso vai propiciar que siga sendo um partido sensível ao sofrimento dos pobres, com clara aproximação da classe média que resultou desta mudança.

Os dados divulgados pelo levantamento preliminar do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) indicam que o conjunto da bancada parlamentar eleita para a Câmara dos Deputados, no dia 5 de outubro, é o mais conservador desde o golpe militar de 1964 – com ruralistas e militares – os mesmos que instauraram duas décadas de ditadura no Brasil e estimularam as ocorridas nos países do cone sul, que vieram em seguida. 43 lideranças políticas desta bancada são evangélicas.

Esse fato determina que a ‘nova’ bancada evangélica - só chamada assim pelo critério cronológico – será maior do que a do último pleito. O fenômeno mais intrigante é o da ‘reeleição com votação em dobro’, de personalidades com articulações e práticas próximas das que a sociedade quis afastar da vida pública, após vencer a luta para aprovar a ‘lei da ficha limpa’. Nesse caso, sua ‘legitimação’ não vem da votação, mas de sua origem numa comunidade religiosa, que busca empoderamento, visibilidade e ascensão social, nunca antes possíveis. Moral: a legitimidade é ilegítima!

A safra dos 32 deputados reeleitos e dos 11 novos é composta de bispos, pastores e cantores gospel, além de deputados - homens e mulheres - que têm suas bases eleitorais no segmento ‘evangélico’. A primeira suspeita recai sobre os depositários de vocações ‘religiosas’, de cantores a bispos, ou da junção delas, como é o caso de Marcos Feliciano, poucas vezes oriundas dos leigos. Outra, com subsídios, é serem baseadas no ‘voto de cajado’, entenda-se o ‘poder pastoral’, consagrando-se com resultados entre 40 e 400 mil votos. A terceira é que os pobres estendem às eleições a ‘troca de bens simbólicos’, de Bourdieu. Mas com números menores, já que Garotinho obteve 693.600 votos em 2010 no Rio. E a última, no pior cenário, sofrendo influência religiosa e sem consciência política e de classe (lumpenoperariat), de Marx, de novo curvadas à burguesia. Estes retalhos, Marina Silva tentou costurar, sem sucesso.

Outros elementos vêm dos partidos com vocação para essa fatia do eleitorado (comprometido, fiel e dedicado), que se entrega em nome de uma escatologia (coisas últimas) – o amarramento de suas convicções e expectativas de mudança numa personalidade – sem se dar conta do clientelismo, que ao fim cobra caro pelas supostas ‘vantagens’ e ainda lhe captura a alma, como no Fausto, de Goethe. Quando isso é cimentado por uma fé religiosa comunitária, tem maior durabilidade. Mas o pior, é que o sentimento de culpa atormenta apenas a quem, sem a esperteza jagunça do Riobaldo, personagem do conto Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa, ‘vendeu a alma’. Sem ter guardado o recibo.

Veja a lista preliminar do Diap:

Parlamentar
Partido
UF
Votação
Situação
Evangélica
Silas Câmara
PSD
AM
166.194
Reeleito
Assembleia de Deus
Irmão Lazaro
PSC
BA
161.438
Novo
Batista
Márcio Marinho
PRB
BA
117.470
Reeleito
IURD
Sérgio Brito
PSD
BA
83.658
Reeleito
Batista
Erivelton Santana
PSC
BA
74.836
Reeleito
Assembleia de Deus
Ronaldo Martins
PRB
CE
117.930
Novo
IURD
Ronaldo Fonseca
Pros
DF
84.583
Reeleito
Assembleia de Deus
Sérgio Vidigal
PDT
ES
161.744
Novo
Batista
Manato
SD
ES
67.631
Reeleito
Cristã Maranata
João Campos
PSDB
GO
107.344
Reeleito
Assembleia de Deus
Lincoln Portela
PR
MG
98.834
Reeleito
Batista Nacional
Leonardo Quintão
PMDB
MG
118.470
Reeleito
Presbiteriana
George Hilton
PRB
MG
146.792
Reeleito
IURD
Josué Bengtson
PTB
PA
122.995
Reeleito
Evangelho Quadrangular
Pastor Eurico
PSB
PE
233.762
Reeleito
Assembleia de Deus
Anderson Ferreira
PR
PE
150.565
Reeleito
Assembleia de Deus
Rejane Dias
PT
PI
134.157
Nova
Batista
Christiane Yared
PTN
PR
200.144
Nova
Catedral do Reino de Deus
Takayama
PSC
PR
162.952
Reeleito
Assembleia de Deus
Edmar Arruda
PSC
PR
85.155
Reeleito
Mundial do Poder de Deus
Eduardo Cunha
PMDB
RJ
232.708
Reeleito
Sara Nossa Terra
Sóstenes Cavalcante
PSD
RJ
104.697
Novo
Ministério Vitória em Cristo (AD)
Washington Reis
PMDB
RJ
103.190
Reeleito
Nova Vida
Arolde de Oliveira
PSD
RJ
55.380
Reeleito
Batista
Francisco Floriano
PR
RJ
47.157
Reeleito
Mundial do Poder de Deus
Marcos Soares
PR
RJ
44.440
Novo
Evangelho Quadrangular
Antônio Jácome
PMN
RN
71.555
Novo
Assembleia de Deus
Nilton Capixaba
PTB
RO
42.353
Reeleito
Assembleia de Deus
Marcos Rogério
PDT
RO
60.780
Reeleito
Assembleia de Deus
Jhonatan de Jesus
PRB
RR
20.677
Reeleito
IURD
Onyx Lorenzoni
DEM
RS
148.302
Reeleito
Luterana
Ronaldo Nogueira
PTB
RS
77.017
Novo
Assembleia de Deus
Pastor Jony
PRB
SE
53.455
Novo
IURD
Laércio Oliveira
SD
SE
84.198
Reeleito
Presbiteriana
Pastor Marco Feliciano
PSC
SP
398.087
Reeleito
Catedral do Avivamento (AD)
Jorge Tadeu Mudalen
DEM
SP
178.771
Reeleito
Internacional da Graça
Jefferson Campos
PSD
SP
161.790
Reeleito
Evangelho Quadrangular
Missionário José Olimpio
PP
SP
154.597
Reeleito
Mundial do Poder de Deus
Antônio Bulhões
PRB
SP
137.939
Reeleito
IURD
Pastor Gilberto Nascimento
PSC
SP
120.044
Novo
Assembleia de Deus
Edinho Araújo
PMDB
SP
112.780
Reeleito
Presbiteriana
Paulo Freire
PR
SP
111.300
Reeleito
Assembleia de Deus
Roberto de Lucena
PV
SP
67.191
Reeleito
O Brasil para Cristo
 Fonte: Congresso em Foco


* Jornalista, teólogo e professor (Doutor em Teologia, Pós-Doutor em Letras (PUC-Rio) e Pós-Doutorando em Letras (UFT-Capes)

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