quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Campanha mobiliza sociedade na reparação de crime

Antonio Carlos Ribeiro

Entidades da sociedade civil participam da campanha para transformar o centro de tortura conhecido como “Casa da Morte” no “Centro de Memória, Verdade e Justiça de Petrópolis”.
Mencionada em público pelo ministro da Defesa Celso Amorim, que trabalhou para melhorar a imagem do país no exterior no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando era do Ministério das Relações Exteriores, dedica-se a uma causa ainda mais nobre: devolver o básico direito de sepultar os mortos vítimas da ditadura militar.



Ele também está engajado em outra causa, igualmente relevante: impedir que o corporativismo impeça que a memória do sofrimento de milhares de brasileiros se cristalize como vergonha contra policiais civis e oficiais militares que integraram o aparato de repressão e a se sentirem como os demais cidadãos do único país em que o torturador treme diante do olhar da vítima, sem coragem para enfrentar o tribunal.

Enquanto as assinaturas se juntam ao pedido (http://www.peticaopublica.com/?pi=P2011N7357), encaminhado pelo professor Zwinglio da Mota Dias, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), milhões de pessoas tomam conhecimento do tratamento dispensado a milhares de brasileiros. Contradição flagrante, os mesmos que juraram defender o território com a própria vida, desprezaram a vida de conterrâneos, cuja existência era responsável por transformar o simples espaço geográfico em nação.

Como as masmorras dos castelos europeus medievais ou os campos de concentração, entre outros espaços de negação da humanidade por humanos, por motivações das mais elementares às mais ideologizadas, o espaço que surge do relato da única sobrevivente, após ruas estreitas, sinuosas e elevadas da cidade de Petrópolis, se materializam.

É uma casa branca, janelas de madeira vermelha, pedras de granito na base, belo jardim com o acesso negado por portão de ferro. A casa da rua Arthur Barbosa, 668, no bairro Caxambu, tinha beleza estética, no alto do morro. Aparentemente, uma construção comum, foi usada há 40 anos pelos militares para arrancar as últimas informações de acusados. Em seguida, morte, esquartejamento, distribuição matemática de partes dos corpos por diferentes covas em diferentes cemitérios.

A ausência meticulosa de registros do cárcere privado criado pelo Centro de Informações do Exército (CIE) visava varrer sinais da existência de militantes de organizações de esquerda presos, torturados, mortos e ocultados pela ditadura militar (1964-85). A masmorra era tratada pelo codinome Codão, como mostrou a reportagem (http://www.youtube.com/watch?v=eecOi9jQ9cA).




Só um fato escapou ao expediente da ‘inteligência’ militar: uma prisioneira que foi torturada, seviciada, estuprada e obrigada a denunciar a irmã como subversiva, que esteve lá de 8 de maio a 11 de agosto, escapou com vida, após ser abandonada quase morta: Inês Etienne. Mercê. Coube a essa mulher, vítima de soldados com muita truculência e sem nenhuma bravura, lembrar do conjunto de fatos para denunciar a ditadura.

"Eu estava arrasada, doente, reduzida a um verme e obedecia como um autômato", contaria em depoimento à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Escondidos no senso de dever e guiados por um positivismo caricatural, enfrentaram a campanha internacional que denunciou a prisão clandestina e, mesmo entre os presos que não poderiam sair vivos – todos – foi jogada em frente à casa de uma irmã, pesando apenas 32 quilos.

Entre os presos da Casa da Morte, cuja memória foi resgatada pela lembrança de Inês Etienne, estavam Aluízio Palhano, Ivan Mota Dias, Heleny Guariba, Walter Ribeiro Novaes, da VPR; Paulo de Tarso Celestino da Silva, da ALN; Mariano Joaquim da Silva e Carlos Alberto Soares de Freitas, da VAR-Palmares; Marilena Vilas Boas, do MR8; e o deputado Rubens Paiva.

A resistência dessa mulher driblou o raciocínio labiríntico dos militares. Ela gravou também os codinomes dos torturadores, denunciou a existência da Casa da Morte e, no consultório do médico e ex-militar Amílcar Lobo, apontou o dedo na sua cara denunciando-o como o "doutor Carneiro". O Conselho Regional de Medicina do Rio cassou seu registro.

A memória e persistência dessa mulher foram tão cruéis com o mais desumano dos regimes brasileiros que, quase 20 anos após o fim da ditadura, ela recebeu em casa um marceneiro no dia 10 de setembro de 2003. Foi achada no dia seguinte, com um ferimento na cabeça, resultado de traumatismo crânio-encefálico, passando a ser uma pessoa com limitações.

Em 2009, a memória viva da Casa da Morte recebeu o prêmio de direitos humanos na categoria "Direito à Memória e à Verdade". A então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, chorou. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse: “Minha querida Inês, só queria lhe dizer uma coisa: valeu a pena cada gesto que vocês fizeram, cada choque que vocês tomaram, cada apertão que vocês tiveram”. Pelo direito à memória, a sociedade se mobiliza nesta campanha.

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