sábado, 4 de julho de 2015

Onde parou o evangélico na bancada? A microfísica do poder atribuído pelas igrejas

Antonio Carlos Ribeiro*

A atuação da bancada evangélica – uma composição de cerca de 75 deputados e senadores, eleitos por setores de igrejas evangélicas – que chegou ao poder pelas eleições de outubro passado, com uma composição logo identificada como a mais conservadora desde a ditadura militar, provocou duas reações. A primeira, dos que os elegeram, os grupos mais conservadores das igrejas pentecostais, que deram ‘glória a Deus’ pela conquista histórica e ganharam, finalmente, alguma ‘cidadania’ representativa. A outra, de setores progressistas das igrejas cristãs ecumênicas, que relutaram em esconder a decepção, empenharam-se pelo projeto político já em andamento e só descansaram após a vitória dos partidos progressistas na eleição presidencial.

Após o êxtase, a bancada evangélica (da bíblia) se articula com as da segurança (bala) e  do agronegócio (boi) para alcançar o retrocesso político de 40 anos em apenas seis meses 

Após o segundo turno da eleição, começou o golpismo que mobilizou as forças mais obscurantistas do país, recrudescendo o já ocorrido nas eleições de 2010. Todos sabiam o que significavam as propostas do projeto vitorioso, ao mesmo tempo começaram as reviravoltas, as lutas de bastidores, o desmonte do projeto que a população brasileira escolheu. O golpismo manteve as cores e as estratégias de meio século atrás e o novo ano começou sob a égide do ressentimento frente à decisão popular. No entanto, o pior golpe para o mundo evangélico foi deparar-se com os parlamentares que elegeu. Na Câmara, dos 11 membros da diretoria, oito respondem a processos, dos quais quatro já foram condenados. Alguns têm ficha criminal extensa. Aí as igrejas se surpreenderam com o grupo integrado por ‘evangélicos’.. 

A perplexidade da população frente às igrejas cristãs representadas nesses parlamentares logo se mostrou. Ao mesmo tempo, começou uma articulação para a manutenção dos eleitos e, sobretudo, de sua legitimidade dada pelo voto das igrejas em resposta à sociedade. O sentimento é o da falta de esperança nesta ‘diretoria’ oriunda da igreja, que só após ser eleita em assembleia ficou visível para o conjunto dos eleitores. Há quem gostou, quem ficou indiferente, quem não sabe como foram eleitos, quem se decepcionou profundamente, e até quem já escolheu outra igreja na qual congregar, por prever, pela vivência de fé e de experiência de vida, que o grupo eleito não estava preparado. Houve quem marcou prazos para o primeiro conflito. E ainda quem se dispôs a mediar conflitos, buscar alternativas e pedir uma semana de oração, para a comunidade não se desintegrar com o mal-estar. 

No primeiro semestre a situação política se agravou, o golpismo encontrou resistências, a sociedade rejeitou mais fortemente que o esperado e chegaram os impasses. Na crise que se agudiza entre os recursos da corrupção, as denúncias das estratégias surgidas nos plenários, da bancada sucumbido – já distanciada de sua base eleitoral – e evocando razões próprias, começam os escândalos. O presidente eleito da Câmara dos Deputados, já conhecido por sua capacidade de conseguir acordos nos bastidores, tendo que pagar dívidas de campanha aos financiadores, não se furtou em assegurar o grupo em torno de si, e nem de ameaçar. Dos parlamentares eleitos à presidente da República. A bancada de maioria absoluta masculina e já atrelada às bancadas do agronegócio e da segurança, se entregou sem resistência. Os demais parlamentares e a Presidente, vencem algumas batalhas e perdem outras. 

Se o maior impacto da crise das igrejas aparentemente passou, pelo distanciamento do contato com a comunidade, a crise maior se estabelece. Com os representantes das igrejas e o caos surgido da gestão toma-lá-dá-cá própria do parlamento, com a bancada que manteve lobos muito espertos e jovens cordeiros ingênuos, que apõem a assinatura sem discutir, nem responsabilidade a assumir e sequer entrevistas a dar, já que compõem a raia miúda do Congresso, parte significativa exercendo a primeira legislatura. Sequer se destacam, já que são somente votos, dados sem questionamento, levados de roldão por lideranças de dentro e de fora. 

Se nos três dias de cada semana, contados a cada hora, minuto e segundo passados na casa legislativa, o alívio fica sempre para a 4ª ou 5ª feira, se houver votação importante, em sessão na qual faltar significa alta traição, como com Idi Amin Dada - esconjurados todos os demônios do cozinheiro que virou general e ditador de Uganda no período de maior repressão da nossa ditadura (1971-79) - dos quais alguns desses rapazes que atuaram nas lideranças da juventude das igrejas sequer ouviram falar. Esse fato é fundamental para que possam assumir o papel desses ‘demônios’ chamando-os, suavemente, de espírito patriótico e democrático. 

Acresça-se a isto a baixa formação política, a ligação a partidos surgidos nos últimos anos, filhos de pastores cada vez mais tradicionais, autoritários e moralmente rígidos, apesar da flacidez física e emocional imposta pelo tempo. As respostas, propostas no desespero das igrejas que representam, é ainda mais frágil e com pouca expectativa. As ‘irmãs e irmãos na fé’ dizem que á uma fase, que vai ser superada e que estão no caminho certo de defesa da família – valor fundamental, apesar das diversas ‘tentações’ abalarem casamentos – amplificando a crise e fazendo surgir soluções de ‘curativo’ na realidade que pede cirurgia. 

Os novos parlamentares são soldados armados com o mandato, seguindo generais de apenas mais idade e um lema a ser seguido: a preservação da família e da igreja – sempre conseguindo recursos, se possível emissoras de rádio – e a sociedade quando for possível. Vai lutar neste caso, mas com a certeza de ter ‘salvo’ o básico. Não importa o que venha, serão guardados e protegidos, não se animarão a consultar suas bases – já que não conhecem a Câmara, nem a política e nem o poder – tarefas sempre dos líderes de sempre – com ordens objetivas a executar e a própria crise emocional, sob o confronto de uma batalha para a qual não se prepararam. 

Aderir à política tradicional é a única não-opção que têm. Ou esgueirar-se pelos cantos dos corredores, escadas e rampas do Parlamento, até os quatro anos se passarem e poderem voltar à pequena cidade, igreja, vida familiar. Ou ficarem por lá ad aeternum, com ‘jeitinho brasileiro’ aprovando uma emenda em 25 anos, como Bolsonaro. Parece que as velhas lideranças – sem perspectiva, formação, amoldadas à corrupção e justificadas por razões muitas – não tinham muito a deixar aos que as sucederam, da própria família, da mesma igreja e com a experiência de retiros, congressos e convenções. 

O país vive uma lacuna absolutamente inusitada de legisladores, com demandas monumentais resultantes dos avanços da década. Em todas as áreas há projetos a serem aprovados, lógicas novas de um mercado que cresceu, práticas de implementação a serem revistas, propostas inéditas que exigem formação e especialização, e paradigmas que já mudaram, estabelecendo novos vetores, parâmetros e dimensões. E as igrejas agora percebem que seus ‘jovens valorosos’, ‘grandes lideranças’ em que projetaram ‘muitas expectativas’, se mostram aquém do esperado em seu tempo e campo de atuação. Sem falar na ponte inexistente entre as igrejas e a sociedade. Quem vai mediar os conflitos, propor soluções, já que pedir a semana de oração já indica o caos?! 

Em meio ao sofrimento, as Igrejas que os elegeram, precisarão ‘aprender a aprender’, suportar serem ‘provadas na fornalha da aflição’ (Is 48.10) e redescobrir o próprio chão. Lembrar do que lhes será cobrado para poder dizer ‘não’ e ‘sim’. Até que percebam e purguem seus próprios erros, depurem a própria teologia de intervenção na vida social e ajustem o equilíbrio entre seu papel na sociedade, que Luther King Jr chamou de ‘ser a consciência crítica do Estado’. Só depois poderemos debater a intolerância.

Transcrito de Novos Diálogos

* Mestre e Doutor em Teologia e Pós-Doutor (PUC-Rio), jornalista, pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil (IECLB) e Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Tocantins (UFT) - Campus Araguaína

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