domingo, 26 de fevereiro de 2012

A dama era de ferro, really

Antonio Carlos Ribeiro

Antonio Carlos Ribeiro

A férrea dama que ocupou a cena política dos anos 80 é o tema do filme A dama de ferro (The Iron Lady, drama, 105 min., Paris Filmes), dirigido por Phyllida Lloyd e estrelado por Meryl Streep, um retrato sem retoques, beirando ao caricatural, mas fiel da primeira ministra inglesa Margareth Thatcher. A monumental produção cinematográfica, em cartaz nos cinemas, a destaca como resultado da origem pobre e conservadora, o esforço para formar-se e afirmar-se num ambiente em que fineza disfarça rigidez e a falta de tato para situações limítrofes confunde truculência com tradição.férrea dama que ocupou a cena política dos anos 80 é o tema do filme A dama de ferro (The Iron Lady, drama, 105 min., Paris Filmes), dirigido por Phyllida Lloyd e estrelado por Meryl Streep, um retrato sem retoques, beirando ao caricatural, mas fiel da primeira ministra inglesa Margareth Thatcher. A monumental produção cinematográfica, em cartaz nos cinemas, a destaca como resultado da origem pobre e conservadora, o esforço para formar-se e afirmar-se num ambiente em que fineza disfarça rigidez e a falta de tato para situações limítrofes confunde truculência com tradição



Relato entrecortado com cenas do presente, as imagens da mulher idosa com a saúde precária, lutando conta a aposentadoria, que ouve atrás das portas a conversa dos funcionários que a atendem, relembrando situações dramáticas dos anos de sobressalto, afirmação e força impositiva. As lacunas são os fragmentos das relações pessoais, dos carinhos, dos netos que nunca vê, da vida social de que foi privada e dos desgastes da chefia do Estado, em estilo conservador.

A pobreza das relações familiares, com os altos custos emocionais e pessoais, é retratada brilhantemente por Streep. Da família que sobreviveu a bombas, do pai que brande chavões conservadores, do marido Dennis Thatcher, quase figurativo, de personalidade performática, que parece alguém quase necessário e com chegada e saída apoteóticas. Do filho de ausência sentida, com existência só evocada nas fotos e filmes da infância, e da filha, a única que a acompanha, por ser a única que lhe resta e para quem breves diálogos parecem atenção.

O retrato do marido pareceu abusar do caricatural. É uma figura educada, inteligente e com senso de humor, ao estilo inglês. Esse traço surge na primeira vez que a viu, em meio ao engessamento emocional do relacionamento afetivo, a convidando para dormir ou a animando para enfrentar situações dramáticas – courage, MT! – da saída do carro à entrada no prédio público. Mas ainda há anos luz de conseguir um gesto de gratidão, amizade ou simples sensibilidade humana.

Em meio aos desvarios da velhice, quase cai sobre a estatueta dos soldados britânicos fincando a bandeira nas Ilhas Falkland. As cenas que usam imagens históricas dos navios de guerra em pleno Atlântico e o ‘monte de terra gelada pelo que vão lutar’, como disse o presidente Ronald Reagan, após a cena da ordem para afundar o General Belgrano, da esquadra argentina. O avião forçado a pousar no Galeão e desarmado, as balsas de sobreviventes metralhadas no oceano gelado e o navio Shefield cortado ao meio por um míssil exocet, acolhido como ‘amigo’ pelo computador de bordo não apareceram. A oposição na House of Lords, silenciada e chamada a ser ‘british’. E as cartas enviadas às famílias de centenas de soldados mortos.

Soldados e barcos britânicos em tom festivo nas Ilhas chamadas Malvinas ‘retomadas pelos argentinos’, e a Scotland Yard reprimindo gente nas ruas de Londres. Cenas dramáticas, típicas de governos que usam contra a população a mesma força letal do teatro de guerra. E a mesma postura decidida na campanha, no Parlamento, diante da imprensa crítica, contra os manifestantes e os atentados do Irish Republican Army (IRA).

A consistência da postura política da chefe de governo do Reino Unido lembra metal pesado parecendo ouro. Dura, exigente e gritona para lidar com a oposição no Parlamento, ridicularizar o secretário na reunião do ministério e dispensar o marido, mesmo ao voltar num sonho, depois de morto. Entre uma situação e outra, as cenas do lixo acumulado em frente ao prédio da administração, da polícia reprimindo os trabalhadores e das explosões.

O que mais desperta a atenção é a ausência dos traços de humanidade na personalidade de boa aparência e frases feitas diante de crises agudas. Sem pânico, lágrimas, decisões perturbadoras e nem sinal de sentimento de culpa. Sequer vícios, que imortalizaram Churchill. A narrativa beira à que os americanos faziam do perfil psicológico dos russos nos filmes típicos da guerra fria. Os vestígios de humanidade que naquele caso podiam comprometer a visão do mundo ocidental, neste são suaves ausências, duras ordens em tom baixo e um controle vitoriano da expressão dos sentimentos que explicam o ‘Dama de Ferro’, apelido dado justamente pelos russos.

Quando Luiza Erundina foi eleita prefeita de São Paulo, Jarbas Passarinho disse que ela seria nossa Margareth Thatcher. Errou. Ela trabalha até hoje, tem mandato articulado e respeitado, se movimenta em qualquer espaço governamental e, diante de uma sentença judicial covarde e certeira, teve ampla solidariedade. Não é de ferro!

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Bem-vindos ao país Ficha Limpa!

Antonio Carlos Ribeiro

A manifestação do Movimento de Combate à Corrupção (MCCE) celebrando a aprovação da Lei da Ficha Limpa – contra todos os percalços atravessados no caminho – é uma conquista da sociedade brasileira! A pau e corda! A lei contra todos os desmandos eleitorais e legislativos, contra as pretensões das elites e seus veículos de informação, contra setores conservadores e seus apoios espúrios, finalmente venceu!


A nota pública do MCCE, abaixo, destaca que a sociedade civil finalmente venceu uma luta dura. Que foi enfrentada até o último momento. Que significou uma conquista da qual só sentiremos o sabor, na prática, nas próximas eleições. Que seu objetivo é lembrar que teve a participação de muitos brasileiros e brasileiras. E de, sem ingenuidade, insistir que a luta não terminou.

Essa tarefa de sanitarismo moral deve continuar, até porque os males acumulados nos desmandos, nos desvios, nos recursos, nas conversas de botequim e alcova – guindados a parecer acordos políticos de gente honrada – não estão completamente afastadas. Vale lembrar que são séculos de conivências e consentimentos, por recursos que vão do sentimentalismo barato a sentimentos legítimos, mas mal-informados.

O que o país – sua banda honrada, naturalmente – não pode perder de vista que a Justiça foi sempre a última artéria pela qual a sobrevida da corrupção foi acobertada, assegurada pela ‘desmemória’ produzida pela grande mídia e legitimada ilegitimamente por organismos que gerenciam paixões populares – do futebol aos que empunham martelos dourados – mesmo os substituídos por colarinhos brancos, fardas de diversas cores e togas pretas.

Mudou a base que lhes regia o mando. Votada, questionada, revotada, debatida a partir de recursos muitos, posta de lado por pareceres e relatorias de ministros decanos e jubilados, com ausências e omissões nada honrosas, de volta à pauta e finalmente aprovada, como ato limítrofe de um respeito sempre negado – sem júbilo público algum - e, pela força da pressão popular, atendida em tempo hábil.

A história da aprovação da Lei da Ficha Limpa, mostra a força da sociedade civil, a determinação para mantê-la – quando nada para honrar uma vontade popular tantas vezes desonrada – a lealdade das entidades que a representaram bravamente e a derrota da maioria da população que ao escolher governos e fazer avanços sociais, descobriu que sua vontade pode se impor. Contra todos os poderes.

Não sem as vergonhas últimas. A decisão do ministro Cesar Peluso de votar duas vezes ao decidir o retorno do senador Jader Barbalho – dando posse à ministra Rosa Maria Weber Candiota da Rosa, em sessão exclusiva e um dia depois – assegurou o último vexame. Por respeito à luta do nosso povo, recuso-me a comentar favorecedores e o favorecido, cujo mandato natimorto, com os vencimentos de um ano legal e imoralmente debitados aos cofres públicos, enquanto era brilhantemente substituído pela Senadora Marinor Brito, integra o lamento público.

Última vítima, da última batalha, fruto do último recurso, sustentado com os recursos últimos, na última instância recursal que reformou a própria decisão, foi tornada moeda de câmbio entre dois poderes. Mas se tornou ícone da luta da sociedade. Certamente reconhecida por seu Estado e pelo país, que lhe acompanhou o mandato de mulher firme, cuja carreira foi abatida, mas não eliminada.

Mas, a luta pela Lei da Ficha Limpa também propiciou os anti-heróis – de quem a mídia de oposição tanto gosta – em lugar da heroína de fato, não a única a sofrer neste processo breve e longo, mas certamente a que se tornou sua marca.

A manutenção do Conselho Nacional de Justiça, sob a mesma pressão, logo nos dará mais juízes fichas limpas também!

E a sociedade descobriu, nestas últimas vitórias, que o país pode ter heróis. Que não serão pessoas perfeitas mas nos deixam o exemplo de honradez, luta e vitórias para a sociedade. A próxima etapa é ficar atento aos anti-heróis que nos são apresentados como heróis. E das meios de comunicação que os apresentam como tais.

Entidades sociedade civil que apoiaram a luta por esta conquista: Abong, Abracci, Abramppe, ADPF, Ajufe, AJD, Amarribo, AMB, Ampasa, Anamatra, AMPCON, Anadef, ANPR, ANPT, APCF, Auditar, A Voz do Cidadão, Bahá’i, Cáritas Brasileira, CBJP, CFC, CFF, Coffito, CNBB, CNS, CNTE, Confea, Cofen, Conam, Conamp, Conic, Contag, Conter, Criscor, CUT, Fenafisco, Fenaj, Fisenge, FNP, Ibase, IFC, Inesc, Instituto Ethos, MPD, OAB, Rits, Sindifisco, acional, Sindilegis, Unacon, Unasus e Voto Consciente. E a íntegra da nota pública:

MOVIMENTO DE COMBATE À CORRUPÇÃO ELEITORAL – MCCE

Nota pública

A sociedade brasileira pode finalmente comemorar uma conquista histórica: a Lei da Ficha Limpa está definitivamente incorporada ao nosso sistema eleitoral.

Não voltaremos a nos deparar com a renúncia de mandatários motivada por razões destituídas de espírito público. Aquele, por outro lado, que já ostenta uma condenação criminal ou por improbidade proferida por um órgão colegiado, terá agora oportunidade de dedicar especial atenção ao processo que ameaça sua liberdade, não podendo figurar como pretendente a mandato público eletivo.

Venceram as organizações sociais que se uniram nessa luta na qual pouquíssimos acreditaram desde o início. Venceram os milhões de brasileiros que tornaram a “Ficha Limpa” uma verdadeira marca, um selo de qualidade ético-política. Venceu a Constituição da República, que se viu profundamente respeitada nos seus mais elementares princípios.

É o início de uma revolução pacífica, cidadã e profundamente comprometida com os diretos humanos e a nossa Constituição.

Feliz Ficha Limpa, Brasil!

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Ensino religioso pluralista ou confessional?

Antonio Carlos Ribeiro*

Rio de Janeiro – Às vésperas da votação da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) proposta pelo Ministério Público Federal (MPF), relatada pelo Ministro Carlos Ayres Britto, o canal GloboNews exibe programa indagando a legimitidade da República Federativa do Brasil assumir postura independente em relação às Igrejas e religiões.



A matéria versa sobre o Brasil, um estado laico desde o fim do Império (1889), que teve sua segunda constituinte a partir deste mesmo ano e votada em 24 de fevereiro de 1891, na qual consagrou a Separação Igreja-Estado. Isso significa que o país assume plenamente a doutrina política e legal que estabelece que governo e instituições religiosas devem ser mantidos separados e independentes.

http://g1.globo.com/globo-news/jornal-das-dez/videos/v/saiba-mais-sobre-o-ensino-religioso-nas-escolas-publicas/1811498/

A aparente contradição não se dá entre o princípio de separação Igreja-Estado, por um lado, e ensino religioso, por outro. Até porque o Estado não imiscuir-se em questões doutrinais e a Igreja não interferir em assuntos de Estado funciona há bastante tempo e com claro respeito entre as partes nos países mais desenvolvidos do mundo. Já se a questão for conflito entre estado religioso e saber científico, especificamente orientação pedagógica, aí existem problemas de sobra, inclusive no país em que dias santificados de uma religião se tornaram feriados nacionais.

O ensino religioso em escolas públicas também não é uma dificuldade em países com alto nível de desenvolvimento e pluralidade religiosa entre seus habitantes. A propósito, é exatamente o Estado laico o que reúne mais condições jurídicas, pedagógicas e técnicas para gabaritar esse atendimento, com independência e respeito à diferença. Como o que já vem sendo feito, seguindo a legislação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), respaldada na Constituição atual.

A tendência começa com vinheta ‘Fé na Educação’, ao suscitar dois sentidos: o da população crer na educação ministrada e o de legitimar a educação como propagadora da fé. O primeiro é legítimo e ao mesmo tempo, vigente. Já o segundo chega às raias da dúvida se igrejas e religiões têm condições de levar adiante sua pregação por conta própria, ou se precisam amparar-se no Estado. Ou, ainda mais dúbio, se é a pedagogia um saber voltado à vida em sociedade, valores morais e deveres para a cidadania, ou aos princípios de uma confissão de fé.

A menção à origem das religiões em terras brasileiras tem elementos de preconceito. Tenta associar a legitimidade da Igreja Católica pelo fato de ter sido a fé dos colonizadores portugueses. Além disso, ao referir-se a judeus e muçulmanos incluiu a frase “que vivem se enfrentando pelo mundo”, tentando desqualificar a importância e influência destes dois credos, sobretudo porque um é anterior ao cristianismo e o outro tem a mesma população e melhores índices de crescimento.

Nas escolas, a imagem da professora ensinando uma oração suscita a ideia de desrespeito à alteridade e à pluralidade, por mais bela e singela que pareça! Respeitar a criança hindu, maometana, budista ou judia não é impor-lhe a fé cristã. Nem é o melhor testemunho desta fé. Lembrem-se que Gandhi lia diariamente o Sermão da Montanha – uma série de ensinos e pregações de Jesus – mas deplorava a arrogância e violência dos soldados cristãos que dominavam seu povo. Até o modelo confessional-pluralista é contraditório. Pluralista é o que já existe na maior parte do país.

O depoimento da antropóloga Débora Diniz é basilar para a população pensar no que pode esperar do Estado laico: isenção na prestação de serviços, na elaboração de leis que assegurem o Estado de Direito e na atividade judiciária que garanta a isonomia – direito a tratamento igual – e isso deve ficar assegurado já pela via religiosa. Um perigo é vermos aqui a decisão do Supremo Tribunal da Espanha, que obrigou o Ministério da Educação a readmitir uma professora afastada do ensino religioso por ter se casado com um homem divorciado, garantindo a remuneração dos mais de 10 anos em que lutava por seu direito na justiça.

Na prática, o ensino interconfessional é o assegurado pela Constituição de 1988 e tem resultados muito bons. Veja a pesquisa já disponibilizada por especialistas (http://www.gper.com.br/). A propósito, esta é a pergunta central da Adin, redigida pela Procuradora-Geral em exercício Deborah Duprat, que explica como o Acordo Brasil-Vaticano – um documento diplomático, sem força normativa e constitucional – pode induzir a uma filiação religiosa, situação incompatível com a atuação da escola pública.

A proposta feita em São Paulo significa um avanço, porque trabalha em base mais objetiva – o ensino de história das religiões – exige formação duplamente qualificada, respeita a diversidade e aposta que o Estado independente cria mais interlocução com seus grupos, incluídos os religiosos. E tratará a todos com a mesma deferência.

Ao mesmo tempo, levante suspeitas sobre as críticas da própria emissora ao Irã e ao regime dos aiatolás, veja como trata outros credos e os termos usados para se referir a outras manifestações religiosas. A discriminação por causa de orientação sexual, etnia, cultura e gênero não é possível, qualquer que seja a interpretação religiosa. Sobretudo em espaço público. Observar isso o ajudará a ser mais crítico e indagará os interesses em jogo na adoção de um modelo em que maioria é cristã e em que complexos de mídia se empenham para implantar em nosso país, incluídos modelos de relação com o Estado que são rejeitados em vários países.

*Doutor em Teologia, especializado em Eclesialidades e Diálogo Inter-religioso na América Latina.

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