Antonio Carlos Ribeiro
Essa semana perdemos Comblin, um teólogo que não temia expressar a opinião. Tinha o que os gregos chamam Parhesia, a capacidade de dizer a verdade, ao falar com franqueza ou até ao pedir perdão. Sem perder a integridade. Antes da partida, chegou um bispo, de idade diferente, mas com a mesma disposição. D. Francisco de Assis da Silva, bispo coadjutor da Diocese Sul Ocidental, da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB), sabe que seu rebanho espera sua opinião, mesmo que as respostas sejam sempre o retrato de um momento, mas assumiu o risco de dizer o que pensa.
Essa semana perdemos Comblin, um teólogo que não temia expressar a opinião. Tinha o que os gregos chamam Parhesia, a capacidade de dizer a verdade, ao falar com franqueza ou até ao pedir perdão. Sem perder a integridade. Antes da partida, chegou um bispo, de idade diferente, mas com a mesma disposição. D. Francisco de Assis da Silva, bispo coadjutor da Diocese Sul Ocidental, da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB), sabe que seu rebanho espera sua opinião, mesmo que as respostas sejam sempre o retrato de um momento, mas assumiu o risco de dizer o que pensa.
ACR - O que sentiu na primeira manhã que acordou após tua eleição para a função de bispo na Diocese Sul Ocidental da IEAB?
D. Francisco de Assis Silva - Na verdade eu estava em Arusha, Tanzânia, onde estava participando da Assembleia de ACT Alliance e onde dois dias antes tinha sido eleito Vice Moderador. A primeira sensação foi de surpresa pela eleição rápida, em primeiro escrutínio. Um sentimento de consciente humildade se apossou de mim e orei a Deus pedindo que me desse sabedoria para a nova responsabilidade na qual estava acabando de ser investido pelo povo e pelo clero da diocese. Sem sombra de dúvidas um desafio de assumir para o rebanho dessa parte da Igreja a função de pastor chefe e, por isso mesmo, uma tarefa que exige uma dependência completa aos desígnios de Deus. Conforme eu tinha expressado na carta resposta ao convite feito pela comissão de eleição, ao aceitar o desafio de ver meu nome no processo de discernimento da diocese, o fiz com a convicção de que um bispo não é uma pessoa investida de poder organizacional. Um bispo deve ser acima de tudo um exemplo e um autêntico pai na fé.
Como descreve as principais etapas de tua formação teológica?
Eu tive a oportunidade de conciliar formação teológica e formação acadêmica quase ao mesmo tempo. Os aportes do Direito e da Ciência Política me trouxeram sempre uma aproximação engajada da Teologia. Assim, não posso esquecer a influência da Teologia da Libertação na minha formação teológica. Inclusive esse cruzamento de instrumentais me permitiu defender minha tese de Mestrado na UFPE sob o ângulo da análise do discurso do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) entre Medellín e Puebla. Deves pensar então que fiz meu curso em um Seminário Católico Romano, certo? Pois foi numa respeitável instituição teológica protestante: o Seminário Batista do Recife, onde também me expus a uma experiência ecumenicamente relevante. Conclui então o meu bacharelado em Teologia em 1989. No ano seguinte, viajei para uma experiência de imersão na Teologia e Liturgia, especificamente anglicanas, no então Seminário Teológico da IEAB, em Porto Alegre. Sob a influência de Jaci Maraschin, pude fazer um diálogo da Teologia da Libertação com os teólogos clássicos anglicanos. Foi um caminho de descobertas e de sínteses que me permitiram juntar o político e espiritual. Hoje posso dizer que estas diferentes exposições criaram para mim um alicerce que me permitiu praticar tanto na área pastoral - pastoreei quatro paróquias e uma missão – e, na área da formação teológica, atuei como professor e coordenador do Centro de Estudos Anglicanos.
Que motivações de fé, de convicção teológica e de compromisso pastoral sentiu na trajetória do nordeste ao sul do país?
Por onde andei sempre estive motivado pelos desafios de compreender como em cada região do Brasil as pessoas buscam viver a sua fé enquanto comunidade. Tive a oportunidade de liderar comunidades de periferia e comunidades de áreas de classe média. Em todas, no entanto, descobri que as pessoas tem necessidade de terem um atendimento pastoral que responda ao seu cotidiano. Isso me ensinou a transitar de sermões exegéticos ou doutrinários para sermões mais existenciais. E o mais interessante em tudo isso é que a transversalidade cultural - norte, nordeste e sul - não altera esse senso do povo de buscar na vivência comunitária as respostas para seus dilemas existenciais mais profundos. A título de exemplo, descobri que desperta mais atenção uma conversação sobre relação entre pais e filhos do que uma refinada explicação sobre o mistério da Encarnação. Embora tenha tudo a ver um assunto com o outro – dependendo do método usado – as pessoas se sentem mais contempladas com uma aproximação mais existencial de suas vidas.
Que experiência paroquial mais lhe despertou a atenção e te envolveu?
Outro aspecto que tem me ajudado nesta trajetória, como falei antes, é que tive o privilégio de dirigir pastoralmente distintas comunidades e cada uma me marcou de uma forma muito particular. Sem desmerecer nenhuma, gostaria de destacar duas experiências que foram muito enriquecedoras no meu ministério: Paróquia do Bom Samaritano, em Boa Viagem, em Recife (PE) e a Paróquia Todos os Santos, em Novo Hamburgo (RS). Na primeira, tive uma curta e rica experiência que culminou na formação de uma Missão constituída essencialmente por jovens. Foi uma experiência super gratificante. Dessa comunidade, chamada Missão da Liberdade, saíram três vocações sacerdotais e hoje esta comunidade permanece firme na Diocese Anglicana do Recife, com um ativo trabalho no campo social. Na segunda comunidade, em Novo Hamburgo, vivi por cinco anos e meio uma rica experiência pastoral. Uma comunidade com leigos e leigas engajadíssimos em sua fé. Jovens, adultos e pessoas idosas com uma capacidade de resposta imediata, denotando uma maturidade e vitalidade fantásticas.
O que provocou reflexão na função exercida no Centro Ecumênico de Capacitação e Assessoria (CECA) e da experiência de gerenciar o escritório de religião do Fórum Social Mundial?
O CECA foi uma escola de vida e uma ocasião para aprofundar ainda mais minhas convicções acerca do ecumenismo. O que já se constituía uma consciência, tornou-se experiência concreta envolvendo diálogo inter-religioso e compromisso com um outro mundo possível. Com humildade, assumi a coordenação do campo inter-religioso do FSM 2003, um grande desafio que - junto com a equipe do CECA e os colegas luteranos, metodistas, católicos e de outras religiões - representou um sinal concreto de como a busca por uma sociedade mais justa e inclusiva pode reunir diferentes cosmovisões religiosas. Interagir com a cooperação ecumênica internacional, igrejas, organismos ecumênicos e religiões demandou uma capacidade de compreensão de linguagens e métodos que só ampliaram em mim o respeito e a admiração pela riqueza da diferença. Também no CECA aprendi muito com as minhas colegas de trabalho no que se refere à luta pela igualdade de gênero e pude assistir transformações de vidas e protagonismos através da formação de promotorias legais populares.
Quais as tuas expectativas em relação aos encargos e responsabilidades que este novo momento te traz?
Minha expectativa é de que no rastro daqueles que nos antecederam na liderança espiritual do povo da diocese, possamos levar nossas comunidades espalhadas pelas regiões ocidentais do RS e de SC a viverem o Evangelho com alegria. Construir uma unidade diocesana enriquecida pela riqueza de suas diferenças culturais. O povo anglicano da diocese Sul Ocidental tem dado, ao longo da história da IEAB, uma grande contribuição missionária. Daqui saíram grandes lideranças que corajosamente expandiram a Igreja para outros rincões de nosso país. A diocese foi um celeiro de vocações e a IEAB tem tido uma grande visibilidade por estes pagos, como se diz por aqui. Além da alegria, tenho a expectativa de levar a diocese a contribuir para o aprofundamento da vivência ecumênica e inter-religiosa. E, como resultado da junção entre uma vivência vívida do Evangelho e um ecumenismo maduro, contribuir para a construção de uma sociedade justa e solidária. Não imagino uma fé vivida apenas dentro dos templos. A alegria dos templos deve se espalhar porta a fora e contagiar uma sociedade cada vez mais carente de uma religião que escute sabiamente suas necessidades e ajude a transformar a sociedade. Tudo isso será possível com a construção de uma unidade diocesana entre clero e povo, que cuide de sua vitalidade espiritual e lhe dote de um amor pela vida e pelas pessoas de qualquer segmento social.
Da tua participação na Reunião do Conselho do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) em Potsdam, em 2001, até a chegada ao episcopado, o que mudou em tua visão em relação às tarefas representativas internacionais e às mudanças que o país viveu na última década?
Bem lembrado, Antonio. São dez anos que não parecem somar uma década! As coisas aconteceram muito rápido. As transformações foram tantas que é bem difícil sistematizar de forma mais simples tudo o que aconteceu. Me lembro que enquanto estava em Potsdam, participando da reunião do Comitê Central do CMI, foi lançada a Década pela Superação da Violência contra as Mulheres. Isso revolucionou a vida das Igrejas e hoje, apesar de algumas resistências ainda, o que se viu foi um cair de máscaras que expôs com muita transparência a situação vivida pelas mulheres dentro de nossas próprias Igrejas e na sociedade como um todo. Eu diria que se precisa avançar muito ainda, mas foram criadas as condições para se enfrentar com coragem o problema. Foi o ano que eu entrei no CECA e onde os eixos de ação da entidade foram reformulados para se dedicar com mais profundidade ao tema. No que diz respeito ao Brasil, vivemos grandes transformações. Me recordo que enquanto estava em Potsdam, fomos surpreendidos com a primeira maxi-desvalorização do Real, atestando que ali começava a derrocada econômica do governo FHC, que passou a gerar incertezas sobre o futuro econômico do país e que acabou culminando no ano seguinte com a vitória de Lula nas eleições presidenciais. O que se viu nos anos seguintes foi a adoção de políticas públicas que melhoraram em muito a condição de vida de muitos brasileiros e brasileiras. É evidente que tudo isso se deu em meio a grandes embates políticos, mas acima de tudo com o protagonismo da sociedade brasileira, que foi chamada a contribuir com a construção de políticas de aperfeiçoamento institucional. Claro que o capitalismo brasileiro continuou voraz como sempre e permanecem ainda insolúveis algumas questões, relativas à concentração de riqueza e de meios de produção, além de uma política ambiental pouco vigorosa. Estes embates se esperam solucionar nos próximos anos, e assim devemos continuar lutando até que o Brasil seja um país que dê exemplo de equidade econômica e social.
O processo do local da tua investidura episcopal e a eleição para o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), te trouxeram sinais distintos de comunhão ecumênica. Como elaborou essas experiências, o que aprendeu com elas e como as integra à tarefa recém iniciada?