quarta-feira, 30 de março de 2011

Sem medo de expressar a opinião

Antonio Carlos Ribeiro


Essa semana perdemos Comblin, um teólogo que não temia expressar a opinião. Tinha o que os gregos chamam Parhesia, a capacidade de dizer a verdade, ao falar com franqueza ou até ao pedir perdão. Sem perder a integridade. Antes da partida, chegou um bispo, de idade diferente, mas com a mesma disposição. D. Francisco de Assis da Silva, bispo coadjutor da Diocese Sul Ocidental, da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB), sabe que seu rebanho espera sua opinião, mesmo que as respostas sejam sempre o retrato de um momento, mas assumiu o risco de dizer o que pensa.



ACR - O que sentiu na primeira manhã que acordou após tua eleição para a função de bispo na Diocese Sul Ocidental da IEAB?

D. Francisco de Assis Silva - Na verdade eu estava em Arusha, Tanzânia, onde estava participando da Assembleia de ACT Alliance e onde dois dias antes tinha sido eleito Vice Moderador. A primeira sensação foi de surpresa pela eleição rápida, em primeiro escrutínio. Um sentimento de consciente humildade se apossou de mim e orei a Deus pedindo que me desse sabedoria para a nova responsabilidade na qual estava acabando de ser investido pelo povo e pelo clero da diocese. Sem sombra de dúvidas um desafio de assumir para o rebanho dessa parte da Igreja a função de pastor chefe e, por isso mesmo, uma tarefa que exige uma dependência completa aos desígnios de Deus. Conforme eu tinha expressado na carta resposta ao convite feito pela comissão de eleição, ao aceitar o desafio de ver meu nome no processo de discernimento da diocese, o fiz com a convicção de que um bispo não é uma pessoa investida de poder organizacional. Um bispo deve ser acima de tudo um exemplo e um autêntico pai na fé.


Como descreve as principais etapas de tua formação teológica?

Eu tive a oportunidade de conciliar formação teológica e formação acadêmica quase ao mesmo tempo. Os aportes do Direito e da Ciência Política me trouxeram sempre uma aproximação engajada da Teologia. Assim, não posso esquecer a influência da Teologia da Libertação na minha formação teológica. Inclusive esse cruzamento de instrumentais me permitiu defender minha tese de Mestrado na UFPE sob o ângulo da análise do discurso do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) entre Medellín e Puebla. Deves pensar então que fiz meu curso em um Seminário Católico Romano, certo? Pois foi numa respeitável instituição teológica protestante: o Seminário Batista do Recife, onde também me expus a uma experiência ecumenicamente relevante. Conclui então o meu bacharelado em Teologia em 1989. No ano seguinte, viajei para uma experiência de imersão na Teologia e Liturgia, especificamente anglicanas, no então Seminário Teológico da IEAB, em Porto Alegre. Sob a influência de Jaci Maraschin, pude fazer um diálogo da Teologia da Libertação com os teólogos clássicos anglicanos. Foi um caminho de descobertas e de sínteses que me permitiram juntar o político e espiritual. Hoje posso dizer que estas diferentes exposições criaram para mim um alicerce que me permitiu praticar tanto na área pastoral - pastoreei quatro paróquias e uma missão – e, na área da formação teológica, atuei como professor e coordenador do Centro de Estudos Anglicanos.

Que motivações de fé, de convicção teológica e de compromisso pastoral sentiu na trajetória do nordeste ao sul do país?

Por onde andei sempre estive motivado pelos desafios de compreender como em cada região do Brasil as pessoas buscam viver a sua fé enquanto comunidade. Tive a oportunidade de liderar comunidades de periferia e comunidades de áreas de classe média. Em todas, no entanto, descobri que as pessoas tem necessidade de terem um atendimento pastoral que responda ao seu cotidiano. Isso me ensinou a transitar de sermões exegéticos ou doutrinários para sermões mais existenciais. E o mais interessante em tudo isso é que a transversalidade cultural - norte, nordeste e sul - não altera esse senso do povo de buscar na vivência comunitária as respostas para seus dilemas existenciais mais profundos. A título de exemplo, descobri que desperta mais atenção uma conversação sobre relação entre pais e filhos do que uma refinada explicação sobre o mistério da Encarnação. Embora tenha tudo a ver um assunto com o outro – dependendo do método usado – as pessoas se sentem mais contempladas com uma aproximação mais existencial de suas vidas.

Que experiência paroquial mais lhe despertou a atenção e te envolveu?

Outro aspecto que tem me ajudado nesta trajetória, como falei antes, é que tive o privilégio de dirigir pastoralmente distintas comunidades e cada uma me marcou de uma forma muito particular. Sem desmerecer nenhuma, gostaria de destacar duas experiências que foram muito enriquecedoras no meu ministério: Paróquia do Bom Samaritano, em Boa Viagem, em Recife (PE) e a Paróquia Todos os Santos, em Novo Hamburgo (RS). Na primeira, tive uma curta e rica experiência que culminou na formação de uma Missão constituída essencialmente por jovens. Foi uma experiência super gratificante. Dessa comunidade, chamada Missão da Liberdade, saíram três vocações sacerdotais e hoje esta comunidade permanece firme na Diocese Anglicana do Recife, com um ativo trabalho no campo social. Na segunda comunidade, em Novo Hamburgo, vivi por cinco anos e meio uma rica experiência pastoral. Uma comunidade com leigos e leigas engajadíssimos em sua fé. Jovens, adultos e pessoas idosas com uma capacidade de resposta imediata, denotando uma maturidade e vitalidade fantásticas.

O que provocou reflexão na função exercida no Centro Ecumênico de Capacitação e Assessoria (CECA) e da experiência de gerenciar o escritório de religião do Fórum Social Mundial?

O CECA foi uma escola de vida e uma ocasião para aprofundar ainda mais minhas convicções acerca do ecumenismo. O que já se constituía uma consciência, tornou-se experiência concreta envolvendo diálogo inter-religioso e compromisso com um outro mundo possível. Com humildade, assumi a coordenação do campo inter-religioso do FSM 2003, um grande desafio que - junto com a equipe do CECA e os colegas luteranos, metodistas, católicos e de outras religiões - representou um sinal concreto de como a busca por uma sociedade mais justa e inclusiva pode reunir diferentes cosmovisões religiosas. Interagir com a cooperação ecumênica internacional, igrejas, organismos ecumênicos e religiões demandou uma capacidade de compreensão de linguagens e métodos que só ampliaram em mim o respeito e a admiração pela riqueza da diferença.  Também no CECA aprendi muito com as minhas colegas de trabalho no que se refere à luta pela igualdade de gênero e pude assistir transformações de vidas e protagonismos através da formação de promotorias legais populares.

Quais as tuas expectativas em relação aos encargos e responsabilidades que este novo momento te traz?

Minha expectativa é de que no rastro daqueles que nos antecederam na liderança espiritual do povo da diocese, possamos levar nossas comunidades espalhadas pelas regiões ocidentais do RS e de SC a viverem o Evangelho com alegria. Construir uma unidade diocesana enriquecida pela riqueza de suas diferenças culturais. O povo anglicano da diocese Sul Ocidental tem dado, ao longo da história da IEAB, uma grande contribuição missionária. Daqui saíram grandes lideranças que corajosamente expandiram a Igreja para outros rincões de nosso país. A diocese foi um celeiro de vocações e a IEAB tem tido uma grande visibilidade por estes pagos, como se diz por aqui. Além da alegria, tenho a expectativa de levar a diocese a contribuir para o aprofundamento da vivência ecumênica e inter-religiosa. E, como resultado da junção entre uma vivência vívida do Evangelho e um ecumenismo maduro, contribuir para a construção de uma sociedade justa e solidária. Não imagino uma fé vivida apenas dentro dos templos. A alegria dos templos deve se espalhar porta a fora e contagiar uma sociedade cada vez mais carente de uma religião que escute sabiamente suas necessidades e ajude a transformar a sociedade. Tudo isso será possível com a construção de uma unidade diocesana entre clero e povo, que cuide de sua vitalidade espiritual  e lhe dote de um amor pela vida e pelas pessoas de qualquer segmento social.

Da tua participação na Reunião do Conselho do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) em Potsdam, em 2001, até a chegada ao episcopado, o que mudou em tua visão em relação às tarefas representativas internacionais e às mudanças que o país viveu na última década?

Bem lembrado, Antonio. São dez anos que não parecem somar uma década! As coisas aconteceram muito rápido. As transformações foram tantas que é bem difícil sistematizar de forma mais simples tudo o que aconteceu. Me lembro que enquanto estava em Potsdam, participando da reunião do Comitê Central do CMI, foi lançada a Década pela Superação da Violência contra as Mulheres. Isso revolucionou a vida das Igrejas e hoje, apesar de algumas resistências ainda, o que se viu foi um cair de máscaras que expôs com muita transparência a situação vivida pelas mulheres dentro de nossas próprias Igrejas e na sociedade como um todo. Eu diria que se precisa avançar muito ainda, mas foram criadas as condições para se enfrentar com coragem o problema. Foi o ano que eu entrei no CECA e onde os eixos de ação da entidade foram reformulados para se dedicar com mais profundidade ao tema. No que diz respeito ao Brasil, vivemos grandes transformações. Me recordo que enquanto estava em Potsdam, fomos surpreendidos com a primeira maxi-desvalorização do Real, atestando que ali começava a derrocada econômica do governo FHC, que passou a gerar incertezas sobre o futuro econômico do país e que acabou culminando no ano seguinte com a vitória de Lula nas eleições presidenciais. O que se viu nos anos seguintes foi a adoção de políticas públicas que melhoraram em muito a condição de vida de muitos brasileiros e brasileiras. É evidente que tudo isso se deu em meio a grandes embates políticos, mas acima de tudo com o protagonismo da sociedade brasileira, que foi chamada a contribuir com a construção de políticas de aperfeiçoamento institucional. Claro que o capitalismo brasileiro continuou voraz como sempre e permanecem ainda insolúveis algumas questões, relativas à concentração de riqueza e de meios de produção, além de uma política ambiental pouco vigorosa. Estes embates se esperam solucionar nos próximos anos, e assim devemos continuar lutando até que o Brasil seja um país que dê exemplo de equidade econômica e social.

O processo do local da tua investidura episcopal e a eleição para o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), te trouxeram sinais distintos de comunhão ecumênica. Como elaborou essas experiências, o que aprendeu com elas e como as integra à tarefa recém iniciada?

Realmente são questões para se refletir. A primeira delas é que o ecumenismo tem ainda muito que avançar dentro de nossas próprias Igrejas. No meu caso, entendo que tenha havido um retrocesso, mas ele foi estratégico, pois às vezes, é melhor a prudência e o bom senso do que o confronto. Os grupelhos anti-ecumênicos que existem hoje dentro das Igrejas que oficialmente fazem parte do CONIC se valem da tecnologia de informação para fazer barulho, e isso precisa ser avaliado com mais profundidade. É muito importante ler a declaração conjunta da IEAB e da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) sobre o episódio de minha sagração: ela reafirma que nosso compromisso com a caminhada ecumênica é irreversível. E destacamos que em momento algum os grupelhos anti-ecumênicos se sintam vitoriosos com a prudência que adotamos. A própria Conferência Nacional do Bispos do Brasil (CNBB) de público, na Assembleia do CONIC pediu perdão à IEAB pelos episódios ocorridos em torno do lugar de nossa sagração. A IEAB acolheu com carinho esse gesto, entendendo que em momento algum e de forma oficial a ICAR apoiou a iniciativa de grupelhos anti-ecumênicos que desejavam constranger as duas Igrejas na sagração. O episódio serviu apenas para nos aproximar mais e estejam certos de que muitos avanços serão construídos na caminhada ecumênica, seja em Santa Maria, seja no Brasil como um todo. Nossa eleição para a Vice-Presidência do CONIC representa apenas que a IEAB continua se dizendo presente a todas as iniciativas ecumênicas que levem nossas Igrejas a um testemunho vivo de unidade na diversidade.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Goreé – a marca da luta contra 300 anos de escravidão

Roberto Zwetsch é um teólogo apaixonado pelo trabalho pastoral e pela teologia poimênica. Difícil achar os limites entre os dois em seu trabalho, já que está sempre aprofundando o tema. Seja nas celebrações em templos e diversos outros espaços, na sala de aula, em conferências em eventos acadêmicos ou quando escreve poemas, artigos e livros. Atua como docente de Teologia Prática e Missiologia na Faculdades EST, em São Leopoldo, publicou Missão como com-paixão. Por uma teologia da missão em perspectiva latino-americana, em co-edição da Sinodal e do CLAI, sua tese doutoral, já traduzida ao espanhol. Após voltar do Fórum Mundial Teologia e Libertação, em Dakar, concedeu a entrevista abaixo à Antonio Carlos Ribeiro.



ACR - Qual o significado do Fórum Mundial Teologia e Libertação (FMTL) para as atividades teológicas (ministerial, assessoria, docência e publicações) nos ambientes eclesial, acadêmico e popular?  

Zwetsch - Entendo que o significado do FMTL é sempre limitado. Demora até que as discussões feitas num âmbito internacional cheguem aos ambientes em que seus participantes estão cotidianamente envolvidos. Mas o que me parece importante é o fato de este fórum ser uma espécie de caixa de ressonância dos desafios que emergem da vida cotidiana, das lutas de mulheres e homens por sua dignidade, por seus desejos mais caros, enfim, por sua libertação de tudo o que oprime, desqualifica e destrói. Um dos argumentos que mais apareceu nos debates durante o seminário dos dois últimos dias do FMTL foi de que uma teologia verdadeira deve partir não dos dogmas ou das Escrituras como texto sagrado, mas da vida mesma, ali onde as pessoas sofrem, lutam, crêem, clamam, sonham e forjam suas utopias de um mundo novo possível, onde se possa experimentar o que os aymara da Bolívia chamam de bem viver. Chamou a nossa atenção a dificuldade que sentimos para incluir no nosso debate a teologia muçulmana, pois mesmo convidados, não tivemos a possibilidade de ouvir representantes dessa religião tão importante no mundo atual, sobretudo no norte da África e Oriente Médio.

Que regiões do mundo estiveram representadas no FMTL?

A África evidentemente, mas com participação que poderia ter sido maior e mais representativa. Depois, boa participação de representantes da América Latina, Europa, América do Norte, Ásia e Austrália. Para viabilizar tal participação foi muito importante o apoio das agências ecumênicas de cooperação internacional, que enviaram alguns representantes, mulheres e homens, além das organizações conhecidas como ASETT, Ameríndia, CETELA, ASTE, CETEQ, Instituto de Teologia e Política de Münster, Programa de Povos Indígenas do CMI, FLM, Rede de Cristãos na Espanha e Itália, e outras.

Qual a representatividade ecumênica das delegações enviadas por igrejas ou instâncias eclesiais?

O FMTL não é um fórum de igrejas e organizações ecumênicas, antes se compõe de pessoas, associações e organizações acadêmicas e de pastoral popular, contando com o decidido apoio de agências internacionais de cooperação, sobretudo da Europa. Ele está organizado ecumenicamente com um Conselho Permanente formado por representantes de oito instituições que deram seu apoio desde o primeiro Fórum, e mais um Comitê Internacional Consultivo integrado por representantes de instituições ou organizações que dão sua adesão ao redor do mundo. O FMTL conta com uma secretaria permanente que funciona na PUC-RS, em Porto Alegre, e pode ser acessado pelo sítio na internet: www.wftl.org .

Como foi a participação de grupos nos debates e que ênfases mais lhe despertaram a atenção?

Após a abertura oficial, no dia 5 de fevereiro, tivemos um painel sobre a África e os desafios da teologia hoje. No domingo, fizemos uma visita à bela ilha de Gorée, com uma população de 1500 pessoas que basicamente vive do turismo e do artesanato. Na ilha conhecemos uma das tantas Casas de Escravos, de onde partiram - para uma viagem sem volta - milhões de seres humanos capturados em suas aldeias no interior da África e que eram traficados como mercadoria para servirem de escravos nas fazendas das Américas e do Caribe. Foi uma das experiências mais candentes ver onde essas pessoas - homens, mulheres e crianças - ficavam à espera do próximo navio negreiro que as conduziria ao inferno da escravidão. E isto durou mais de trezentos anos com a complacência de todas as igrejas cristãs! Naquela mesma casa estiveram o Papa João Paulo II, os ex-presidentes Lula e Nelson Mandela, e outros importantes líderes mundiais, assumindo compromissos na luta contra o racismo e todas as formas de escravidão. Nos dois dias seguintes o FMTL se reuniu como organismo para organizar onze oficinas sobre temas atuais que desafiam as comunidades eclesiais e as academias teológicas: Sabedoria dos Povos Indígenas; Religiões e Paz; Islamismo e Cristianismo; Feminismo, Gênero e libertação; Religiões, migração e libertação; Cura e Saúde na África; Crise do capitalismo e direitos sociais globais; Teologia e ecologia; Teologia, negritude e libertação; Crise civilizatória e experiência religiosa; CEBs e Teologia da Libertação. Nos dois últimos dias realizamos um Seminário a partir de grupos de discussão formados em torno das quatro línguas oficiais faladas no evento: espanhol, português, inglês e francês. Os grupos foram instigados a debater como os desafios das mudanças globais contemporâneas afetam as comunidades e as religiões e que respostas a teologia pode proporcionar, desde o ponto de vista das vítimas do sistema global, dos mais pobres e vulneráveis. Houve um grande entrosamento e muita participação nos oito grupos formados, por vezes um tenso debate com posições divergentes, o que se confirmou no grande plenário do último dia, que propôs não apenas a continuidade do processo do FMTL, como também o fortalecimento das redes de comunicação e articulação que emergem em todos os continentes, e que articulam ações de transformação de mentalidade e da própria realidade local e nacional, a partir do nível comunitário eclesial e para além dele.

Você identificou elementos novos no diálogo teológico com setores discriminados: os pobres, as mulheres, as populações negras e indígenas, e os grupos marginalizados dos centros urbanos?

Sim, como o desafio africano de uma solidariedade que parte do cotidiano, do encontro em torno de uma mesa comum, que serve não apenas para as pessoas se alimentarem, mas também para compartilharem recursos, desejos, sonhos e visões. O desafio inter-religioso, do encontro de diferentes que conversam e celebram juntos a partir de distintas experiências espirituais foi outro aspecto que chamou a atenção, tanto por sua urgência - estamos apenas no começo de um longo processo - como pelo despreparo que ainda manifestamos nesse campo. Por fim, a necessária crítica ao capitalismo mundial dominado pelo setor financeiro dos bancos e que, na hora da falência, apela aos estados e cobra a dívida dos povos e, dentre eles, dos mais pobres, como a elevação especulativa dos preços dos alimentos vem demonstrando, sobretudo na África e no Oriente Médio, fato que tem sido apontado como um dos motivos das recentes revoltas populares no mundo árabe.

Que papel os meios eletrônicos assumem hoje para o mundo teológico da periferia (comunicação - rádio, jornal, sítio web, revistas teológicas digitais, comunidades nas redes sociais), além das já conhecidas pastorais, educação teológica e assessorias?

No campo da teologia ainda é tímida a utilização dos meios eletrônicos de modo mais consistente. É um dos desafios urgentes para o futuro imediato, tanto nos seminários e faculdades de teologia como nas comunidades eclesiais. E nesse sentido, o campo da comunicação continuará a ser uma necessidade prioritária, se pensamos no complexo mundo da informação que está despontando neste novo século.

Em que regiões do mundo o FMTL conseguiu fazer avanços efetivos nos últimos anos?

De certa forma, entre as articulações que se expressam no FMTL despontam as da América Latina, Europa e América do Norte, especialmente Canadá. Uma das expectativas para o futuro é integrar mais grupos da África e da Ásia e Oceania.

Como tem se mostrado a teologia do diálogo inter-religioso para as lideranças pastorais e leigas presentes ao evento?

Urgente e difícil, ao mesmo tempo. Pois no FMTL se procura não trabalhar em abstrato, mas a partir de situações concretas de vida. E aí a complexidade das situações cobra seu preço, como ao deixar claro que não há respostas prontas para as relações inter-religiosas e que cada situação merece estudo, abertura de mentes e corações, e uma profunda experiência de compaixão e cuidado para com o diferente.

O que mais te tocou na experiência deste FMTL de 2011?

Foi o contato com as mulheres, crianças e homens do Senegal. Senti na pele a dificuldade da comunicação por não falar francês nem uma das línguas nativas como o wolouf. Mesmo assim, foi possível certo entendimento a partir do inglês ou, em certos casos, falando português e espanhol com pessoas que vivem na África de colonização portuguesa. A visita à ilha de Gorée foi impactante. É indescritível imaginar como era possível viver e sobreviver nos porões das Casas de Escravos para depois enfrentar a longa travessia sem volta e que levaria aquela pobre gente ao inferno da escravidão, mantida por mais de 300 anos. Os africanos têm razão ao reclamar que também se deve dar mais atenção ao holocausto negro do tráfico negreiro, pois segundo estimativas, 40% das pessoas morriam na travessia e eram simplesmente descartadas, jogadas ao mar. Havia nesses lugares um cubículo especial para homens com menos de 60 kg e que servia para que engordassem de tal modo que tivessem forças para suportar a viagem e chegarem vivos no outro lado do Atlântico. Estas pessoas foram tratadas simplesmente como mercadorias, força de trabalho, e jamais tidas como seres humanos, com dignidade e direitos. Esta dívida ainda pesará por muitos anos sobre a sociedade ocidental e, principalmente, sobre as igrejas cristãs. E, ainda que louváveis, não serão pedidos oficiais de perdão aos africanos que reduzirão a necessidade de novas relações de justiça, direito e cidadania para o povo negro em todos os lugares para onde ele foi levado.

E como fica a teologia latino-americana diante deste espectro mundial, em sua percepção?

A teologia latino-americana e, em particular, a teologia da libertação vivem um momento crucial de reconstrução. Durante o FMTL discutiu-se a necessidade de retomar o projeto histórico da teologia da libertação, só que neste momento a partir de novos desafios propostos pelos movimentos de mulheres, indígenas, negros, jovens e camponeses em muitos lugares. Teologia feita desde o chão da vida e auscultando as dores, os clamores e as esperanças que vem dos lugares mais inauditos, lugares teológicos em que o Deus de Jesus se manifesta e se oculta, ao mesmo tempo, e a partir dos quais é preciso forjar um mundo novo possível na esperança da fé que luta, canta, celebra, mas jamais se entrega aos poderosos, aos muitos impérios que continuam a dominar os povos e impedem a construção de uma nova história, democrática e em direção a um mundo mais fraterno e justo. Talvez se devesse enfatizar, novamente, que a teologia da libertação não morreu, pois enquanto houver pobres haverá a necessidade de sua libertação e, portanto, de uma teologia que lhes diga respeito e ajude em sua caminhada. O que não significa, contudo, simplesmente preservar um legado, mas, pelo contrário e em boa tradição dialética, a retomada crítica de sua permanente necessidade de superação diante da realidade em constante transformação. Teologia para outro mundo possível, como foi o título do livro do primeiro Fórum, realizado em Porto Alegre em 2005.

domingo, 20 de março de 2011

Cariocas não terão mais ensino religioso, segundo Conselho

Antonio Carlos Ribeiro


O Conselho Municipal de Educação emitiu parecer negando a implantação do ensino religioso nas escolas públicas desta cidade. O ato foi publicado no Diário Oficial do dia 24 de fevereiro deste ano. A decisão considerou problemas didático-técnicos, a diversidade cultural e religiosa, o critério de representatividade dos credos, o credenciamento de professores e a laicidade da escola pública.

A decisão opina sobre a aplicabilidade do disposto no art.33 da Lei nº 9.394, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 20/12/1996, tratando do Ensino Religioso. A decisão fundamentou-se especialmente na falta de respostas a perguntas técnicas. Se a matrícula é facultativa, como fará parte da carga horária?

Houve ainda as que diziam respeito ao caráter público da educação: como respeitar a diversidade cultural e religiosa?; qual o valor da consulta às instituições religiosas em matéria que cabe ao Estado?; como decidir a representatividade dos credos? e como credenciar os professores?



O Conselho Municipal considerou e reafirmou o caráter laico da escola pública e firmou compreensão de que o ensino religioso não se constitui em área de conhecimento específica, para ser tratada em moldes disciplinares.

O parecer amparando-se na condição de Princípio, atribuída às religiões pela LDB, destacando-se os éticos, estéticos e políticos, mas afirmando que deve ser considerado como um balizador dos Projetos Políticos
Pedagógicos, sem hierarquização face a outros valores que circulam na cultura.

Por fim, o Parecer 04/2011, da relatora Rita Marisa Ribes Pereira e da Câmara, aprovado por unanimidade pelo plenário, considera que “os muitos questionamentos que permanecem em aberto e as conseqüências administrativas de uma adequação precipitada numa rede de tamanha extensão, é recomendável que nenhuma decisão seja tomada até que a ação de inconstitucionalidade apresentada pela Procuradoria Geral da República seja votada”.

Carnaval: das paixões às heresias

Antonio Carlos Ribeiro


A decisão de fiscalizar o uso de imagens religiosas no desfile de carnaval da cidade do Rio de Janeiro, tomada pela instituição religiosa, suscita questões teológicas e pastorais. Os símbolos da fé cristã apareciam apenas no carro que levou o cantor Roberto Carlos através da avenida Marquês de Sapucaí, no segundo dia dos desfiles, mostrou a reportagem de Diana Brito, publicada na Folha de S. Paulo (07/03/2011).



A tensão – conhecida de vários carnavais passados – surgiu quando um grupo de tecnocratas do saber divino percorreu o barracão da escola, fotografou a alegoria, levou as fotos para avaliação da autoridade em imagens do sagrado e exigiu mudanças, ameaçando acionar a justiça, sob o argumento de proteger a iconografia religiosa.

Com uma perspectiva voltada à imagética, de traço barroco medieval – dando a impressão que cairá sobre as cabeças dos fiéis – assumiu a decisão de que a imagem de Jesus não ficaria evidente. A instituição não permite a associação de uma imagem sagrada a uma festa popular. Ao invés da reflexão teológica – que exige tempo, disposição e vontade – optou-se por descaracterizá-la, colocando asas, cabelos claros ou véus que cobrissem o rosto.

A solução foi prática e rápida. Arriscando-se a abusar da paciência cultural, os censores se ativeram apenas as extravagâncias. A escola satisfez o capricho, desfilou, e a sociedade leu os detalhes da negociação, que condimenta a expressão artística crítica das diversas sociedade. Com uma única exceção. Como em 1989, quando a estátua do Cristo Redentor foi proibida, a solução foi o carnavalesco cobri-la com plástico e cercar o carro de “mendigos”.

A decisão eclesial imposta pelo braço judicial, com o Estado laico a serviço da fé, levou o conflito patológico à imprensa em 1989. A publicidade midiática transformou o enredo "Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia", de Joãosinho Trinta, num desfile antológico. As contestações “rigorosas” e “punitivas” propiciaram elementos para discutir da espiritualidade de costumes até a subalternidade ideológica da justiça. A refrega das disputas apaixonadas - o futebol e o carnaval – cedeu espaço à resposta previamente anunciada.

Mas faltou reflexão teológica diante de atropelos como o anúncio impositivo do evangelho, da perseguição a teólogos, da campanha feroz para impedir a eleição de uma deputada comunista que defendia o aborto – misturando a condição de “mulher”, “esquerdista” e “abortista” até a colocação de fetos de plástico sobre o altar – sem qualquer sensibilidade. Como o estranho zelo mortal do venerável Jorge, de O Nome da Rosa, de Umberto Eco.

Em meio à patológica violência cultural, o dogma e a ausência do debate. A expressão de fé conservadora, disposta ao uso de armas que vão do conselho ao pé do ouvido às fogueiras ideológicas, fazem o contraponto da ultra-direita e a vida cultural da metrópole, e da prática pastoral irrefletida e os centros de excelência teológica, a maior parte migrados para as Ciências da Religião, em busca de liberdade.

No centro da crise, a revelação pelo tornassol, esse indicador ácido-base que apresenta coloração de acordo com a acidez, visto como metáfora teológica da prática aguerrida da direita católica que transforma essa expressão do cristianismo na heresia apolinarista, já rejeitada no Concílio de Constantinopla (381d.C). O mesmo que concluiu o Credo Niceno-constantinopolitano e incluiu no terceiro artigo a frase “que com o Pai e Filho é juntamente adorado e glorificado”, de Gregório de Nissa, Basílio Magno e Gregório de Nazianzo, redescobrindo o Espírito Santo. Em vão.

A dificuldade desses cruzados modernos, além do uso letal da internet, é agarrarem-se à idéia de que Jesus Cristo teria um corpo humano e uma mente divina. Se admitissem a máxima cristã: Quod non est assumptum non est sanatum [O que não foi assumido também não foi redimido], talvez aceitassem a humanidade plena de Jesus, pela qual o Filho de Deus assumiu as profundezas da experiência humana – incluindo o medo e a solidão da morte – e na qual poderia redimir até quem desceu à mansão dos mortos.

O Cristo sublimado está próximo da visão dos ricos e poderosos, e se expressa em sua piedade, também sublimada. Eles preferem o abstrato, o intocável e o etéreo. Até porque este não cria possibilidade de contestação. Esse Cristo deve ser mantido aureolado, entronizado e numa redoma de vidro. Lutero preferiu o Cristo crucificado, sem medo de mergulhar no mais profundo da dor humana. Só crê nisto quem sabe que, por mais que caia, ainda estará amparado em suas mãos.

Ao rejeitar uma cristologia do Jesus Cristo sublimado, assentado à destra do Pai, formalizado para a adoração, dependente dos ritos, dulcissimamente piedoso, perigoso à instabilidade emocional, o sambista intuiu o Cristo dos Evangelhos. Aquele da fronte ensanguentada, que nos encontra em meio ao sofrimento, a quem ao olhar as feridas encontramos as nossas, que Johann Sebastian Bach mostrou poética e musicalmente em Jesus Christus meine Freunde [Jesus Cristo meu amigo], conhecido como Jesus Cristo Alegria dos homens.

Para substituir a compreensão do Concílio Ecumênico, esses guerreiros da cultura cristã medieval relacionaram essa autenticidade com o sacrifício, o suplício físico e o dolorismo, que Délumeau explicitou em O Pecado e o Medo. Isso explica a auto-flagelação orgásmica, a tortura incessante do filme A Paixão de Cristo – sangue coagulado em mel, de Gibson – e a excitação diante da guerra. Parecem cultos, mas são guerreiros. De causa íntima!

O dolorismo não salva. A teologia cavalariça não entendeu a adoração verdadeira. A dramática crucificação de Gibson só diz algo a quem não vê os pequenos cristos cotidianos. Apenas o demônio. Em moinhos de vento.




sábado, 19 de março de 2011

Novos Diálogos suscita debate ao lançar obra sobre poder e religião

Antonio Carlos Ribeiro


O lançamento do livro Relações e privilégios, de Alexandre Brasil Fonseca, reuniu pesquisadores e editores interessados na presença protestante na sociedade brasileira. O evento se deu ontem à noite no Instituto de Estudos da Religião (Iser), no Catete, região central da cidade.

O autor, que é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo  e pós-doutor pela Universidade de Barcelona, fez palestra sobre as relações do Estado brasileiro e a Igreja católica, numa época de crescente diversidade religiosa e num ambiente de secularização. A capa do livro mostra foto do presidente Getúlio Vargas e o Cardeal Sebastião Leme, cercados por ministros e pessoas da alta sociedade.



Clemir Fernandes, editor da Novos Diálogos, dirigiu o debate que se seguiu. O sociólogo falou das relações de poder, da insistência da Igreja em manter-se próxima do poder político central, mesmo após o fim do sistema de Padroado, e da emergência das igrejas protestantes, com oradores que adquiriam protagonismo numa sociedade de traço conservador e apoiada em oligarquias, em pleno período republicano.

Outro fato incomum é que a sede do Iser, onde a obra foi lançada, fica em frente ao Palácio Episcopal da segunda Arquidiocese brasileira, e a apenas três quadras do Palácio do Catete, sede do Governo Federal, nesta cidade que foi sede do Vice-Reino do Brasil (1763-1815), do reino do Brasil junto ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (1815-1822), do Império do Brasil (1822-1889) e da República dos Estados Unidos do Brasil (1889-1960).

A obra de Brasil Fonseca, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que resultou de sua pesquisa no doutorado, visibilizou fatos, personagens e circunstâncias em geral desconhecidas da vida social e política, especialmente na cidade que sediou o poder por 197 anos, período em que se tornou palco de diversas relações políticas e religiosas. Sempre em perspectiva oligárquica, conservadora e com apoio do Estado.

Uma pergunta do plenário suscitou o tema do ensino religioso confessional, vigente no Estado do Rio de Janeiro, a partir de acordo entre a Igreja Católica – liderada por um bispo e um deputado estadual -, as igrejas pentecostais e os governos de Anthony William Matheus de Oliveira, o Garotinho, e Rosângela Barros Assed Matheus de Oliveira, a Rosinha Garotinho, que propuseram e conseguiram a aprovação da lei do Ensino Religioso Confessional, sobre a qual tramita uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal (STF).

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