domingo, 4 de novembro de 2012

‘Elefante Blanco’ debate miséria, religião, política e afetividade


Antonio Carlos Ribeiro

Rio de Janeiro – O filme Elefante Blanco (Elefante Blanco, Espanha/Argentina, direção de Pablo Trapero, com Ricardo Darín, Jérémie Renier e Martina Gusmán) traz um enredo atual, chocante e com cenas desconcertantes, embora plausíveis no ambiente urbano, carcomido pela fome, os ditames da religião, o poder das elites - que julgam poder comprar tudo - e a explosiva afetividade.


O enredo da película começa com o padre Julián (Ricardo Darín) sendo submetido a uma tomografia. Depois, o público é levado à Amazônia sem lei, especialmente às populações ribeirinhas, que vivem tão desprotegidas quanto os pobres na idade média – entregues a toda sorte de riscos – e na qual o padre Nicolás (Jérémie Renier) escapa de um massacre, ao ver uma família ser exterminada por não apontar para que lado ele fugiu. Neste lugar, Julián vem buscar o egresso do seminário para outra tarefa, igualmente perigosa.

Julián e Nicolás voltam a trabalhar juntos, agora na Villa Virgen, uma favela da periferia de Buenos Aires. O perfil é o comum da América Latina: pobreza econômica transformada em miséria moral, refino-preparo-tráfico de drogas, sacerdotes que se dedicam ao atendimento dos esquecidos de todos, bispo distante, insensível ao sofrimento humano, agarrado às futilidades eclesiásticas e com autoridade formal sobre quem vive a experiência cotidiana de estar entre Deus e o diabo. E a polícia, o braço armado do Estado para manter a ordem.


Em Elefante Blanco, o lado mais cruel da tragédia é também destes bons moços, de uniformes garbosos à tarefa cotidiana de serviçais do Estado, mediada pelos gritos dos comandantes. Com código rígido, formação militar e sem margem para lidar sequer com os conflitos familiares e os pessoais, sem falar dos esquemas de corrupção da corporação e da relação de dependência do poder estatal e suas políticas para a sociedade.

O trabalho com altos níveis de estresse é o que sobra para os dois clérigos e a assistente social que põem suas vidas em risco, para continuar do lado dos miseráveis, agarrados a uma mística forte que lhes permite conviver com os poderes do Estado, da Igreja, da Polícia e do tráfico – que nas ‘villas’ tem uma lógica clara e letal – apenas para proteger e minorar o sofrimento dos pobres, em meio às contradições.

A atuação de Ricardo Darín encarna este perfil de sacerdote, da mística nascida da ortopráxis à pureza ética que resguarda o rosto humano da religião nos espaço limítrofes. Ele está impecável, das tarefas cotidianas ao modo como lida com a saúde, da capacidade de lidar com o bispo, o governo e os narcotraficantes, o mesmo lugar existencial de onde vem sua autoridade para posicionar-se frente a eles. A cena em que ‘absolve’ o irmão de sacerdócio e a que revela a vontade de mandar todos ‘a la mierda’, são paradigmáticas do perfil da missão.

A relação afetiva entre o sacerdote e a assistente social é outro marco do momento. A paixão romântica irrompe em meio ao caos político, econômico e religioso. É um grito de desespero e a luta para respirar, em meio à asfixia existencial. Assim como em ‘O amor nos tempos do cólera’, de García Márquez, é avassaladora, transgressiva, corajosa, como só acontecem em tempos de calamidades e crise civilizacional agudas. O número de sacerdotes e militantes de todas as frentes de luta que a ela chegaram é incontável, entre os que voltaram ao redil, os que fugiram para salvar vidas e os que se ‘perderam’ ao perder seu grande amor.

Villa Virgen é uma ‘comunidade’, de cerca de 30 mil pessoas, próxima ao projeto do maior hospital da América Latina, lançado por um governo socialista e abandonado desde 1937. O fato em si dá o retrato das elites latino-americanas: endinheiradas pelo controle do Estado, com pouca formação intelectual, muito autoritarismo e o recurso fácil à violência, regados a vaidade tola. O espaço em que os padres trabalham para transformar o prédio abandonado em moradias dignas para aquelas pessoas, é o mesmo que lembra o ‘deserto do real’, de Zizek.

As partes complementares do enredo são os demais padres e voluntários que atuam com e a partir dessa tríade, a célula mais comum dos trabalhos pastorais desenvolvidos nas grandes cidades da América Sul, surgida nos anos 70 a partir da mística dos pobres como os amados preferencialmente por Deus, a repressão do consórcio elites-ditaduras, e da Igreja, pendente para o lado conservador nos centros de maior poder político e econômico, a partir da lógica atemporal que assegura a sobrevivência histórica. Ou de confronto, onde o bispo era pastor.

A capital argentina agrega ao enredo comum das grandes cidades da América do Sul, a pecha dos assassinatos de massa, legitimados por leis humanas e divinas, ‘de exceção’, sem disposição de poupar sequer os ‘seus’, já que as vantagens do atrelamento com o Estado superavam em muito o pecuniário e o institucional. Os feriados religiosos e as bênçãos episcopais à repressão mais brutal, já enfrentadas por todos os países da região, exceto o Brasil, testemunham o dilema teológico de defender o rebanho ou assegurar a presença da instituição religiosa.

A película dirigida por Trapero é como os vitrais das Catedrais, projetados para narrar a história da salvação, ocultando o conflito das relações nem sempre claras, entre as paixões da fé popular, da instituição eclesial e do Estado dominado pelas elites. Nestas, se destacam homens e mulheres, que deram à sua vida o sentido das causas a que abraçaram, pelas quais viveram e morreram. Ao serem guindados de líderes a mártires, enriqueceram a mística combativa deste ‘continente sofrido e maravilhoso’, como escreveu Gutiérrez.

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=1slXgR3NAmo

sábado, 3 de novembro de 2012

Ato inter-religioso evoca a memória dos mortos e desaparecidos

Antonio Carlos Ribeiro
Fotos: João Carlos Araujo e Christine Drini

Rio de Janeiro – Um ato ecumênico e inter-religioso realizado na 6ª feira, dia 2 de novembro, no Cemitério Ricardo de Albuquerque, zona oeste da cidade, evocou a memória de mortos e desaparecidos da ditadura civil-militar brasileira. O culto contou com a participação de cristãos, judeus e membros da Umbanda e do Candomblé, das quais havia bispo, monge budista, sacerdotes, pastores, babalorixás e demais lideranças.


O ato se deu em frente ao monumento do Grupo Tortura Nunca Mais, composto de uma placa de aço preta, com o nome da entidade, a reprodução da imagem do monumento às vítimas da ditadura – do arquiteto Oscar Niemeyer e que faz parte do memorial da América Latina – e dos nomes de militantes, colocados também em colunas com espelho – onde visitantes se veem como vítimas possíveis, ao olhar o próprio rosto, e o campo dos indigentes – onde há apenas cruzes, algumas numeradas.

O ato memorial lembrou ainda diversos outros militantes que morreram vitimados pela repressão, lembraram ainda adolescentes que morreram nos últimos anos sob tortura em delegacias civis, por causa da resistência da sociedade brasileira de debater o tema, negando a brasileiros a cidadania, às famílias os seus mortos e o direito de sepultamento, dificultando o debate e impedindo a nação de virar sua página mais trágica.


O ato celebrativo teve momentos como chegada, memorial e compromisso, com leituras individuais e responsos litúrgicos, o cântico de músicas como ‘Sentinela’, de Milton Nascimento e Fernando Brant; ‘Abre as asas sobre mim’, de Ney Lopes; Suíte dos pescadores, de Dorival Caymmi; ‘Para não dizer que não falei de flores’, de Geraldo Vandré; ‘Enquanto houver sol’, de Sérgio Britto; ‘Amanhã’, de Guilherme Arantes; e ‘Apesar de você’, de Chico Buarque de Hollanda.

http://www.youtube.com/watch?v=A_2Gtz-zAzM&NR=1&feature=endscreen

Houve depoimento de lideranças religiosas que atuaram durante a ditadura acolhendo pessoas, ajudando a preservar a vida de militantes, religiosos, parentes, e gestionando em nome dos que foram torturados por engano, acusados de crimes nunca provados e dos que lutavam contra o golpe de abril de 1964. A Pastora Christine Drini, da Igreja Luterana da Baviera, Alemanha, atuando a pouco mais de um ano, se mostrou chocada ao ler informações e ver as fotos dos rostos deformados pela brutalidade extrema, no cartaz do evento.


Além do Grupo Tortura Nunca Mais, a iniciativa recebeu apoio da Comissão da Verdade (Alerj), Rede Fale, Rede Ecumênica da Juventude (Reju), Movimentos Mães de Acari, Mães da Candelária, Moleque, Associação Bnai Brith, Rede Contra a Violência, Cheifa, Iser, Iser Assessoria, Ofarere, Budista Primordial, Igrejas Católica, Anglicana, Luterana, Presbiteriana Unida, Presbiteriana Independente e Aliança de Batistas, sob a coordenação de Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, que pediram a apuração e punição dos agentes do Estado.

O ato foi encerrado com um momento de silêncio em memória das vítimas e um abraço coletivo, com as pessoas sendo chamadas a renovar esperanças e curar feridas. E por último, bradaram: ‘Pela vida e pela paz, tortura nunca mais’.

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