Antonio Carlos Ribeiro
O filme Lutero (Luther, Dir. Eric Till, com Joseph Fiennes,
Peter Ustinov, Bruno Ganz, Alfred Molina. Biografia. Alemanha, EUA, 2003) narra
a história do teólogo alemão que viveu na passagem dos séculos XV-XVI, um
período que marca o fim da Idade média e o início da modernidade, cuja marca
são as grandes e significativas transformações ocorridas no mundo ocidental –
com sua influência extrapolando os limites da Igreja, alcançando a intervenção
do Estado e reestruturando a cidadania - especialmente no mundo eclesial.
O século 16 começa com duas Igrejas – a Igreja Católica Romana
e a Igreja Ortodoxa Grega – e termina com cinco, com o surgimento das igrejas
luterana, anglicana e reformada, que surgiram das lutas pela conquista da
liberdade religiosa. Essas lutas provocaram fatos que afetaram diretamente a
vida da igreja ocidental, já que a separação do bispado de Roma e do
Patriarcado de Constantinopla em 1054 causou um pequeno impacto na Europa.
Além do conflito religioso, esse período foi marcado também
pelo desgaste de um modelo de sociedade, passando da perspectiva medieval para
a moderna, com a gradativa implantação de outro modelo de sociedade, sob o
impacto do movimento renascentista – especialmente na França – e a mudança de
hábitos financeiros, entre outros avanços.
Lutero se comporta sempre como um teólogo, com perspectiva
pastoral, atuando na Universidade de Wittenberg, intervindo no serviço da
educação pública e de qualidade – contando com participação firme e meticulosa
de Filipe Melanchthon – mantendo a influência junto à nobreza alemã, à qual
enviou um documento, especialmente o príncipe Frederico, o sábio, da Saxônia.
É importante lembrar que essas mudanças implicaram no
envolvimento e articulação de gente capaz, da força da educação na cidadania, do
governo do príncipe e da formação das lideranças para gerir esse conjunto de
novidades. A colonização sofreu o efeito das práticas mercantilistas,
enfraqueceu as corporações de ofício, exigiu medidas contra o lucro –
incomodando a casa bancária dos Fugger – e contra atitudes como a retenção de
estoques, para os cereais serem vendidos por alto preço durante a escassez.
Outra frente de debate e mudanças era o surgimento das
monarquias centralizadas que já tentavam se impor ao modelo medieval de
pequenos poderes regionais. Disso decorre o surgimento da cidadania, dos
poderes públicos, da autoridade política, da sua competência, da
possibilidade legítima de lhes fazer oposição, e até de afastá-los do poder, quando
exorbitavam os seus limites.
Essas questões sofriam a influência do processo de mudança
que o mundo de Lutero experimentou, como o Renascimento, redesenhando a nova concepção
do homem e, em seguida, a nova sociedade na qual essa população começaria a
viver, atuar, intervir. E, por último, a nova reconfiguração da Europa pelas
navegações, o mercantilismo e os descobrimentos. Quando a Alemanha vivia esse ciclo
de transformações, a América e o Brasil acabavam de ser descobertos.
O universo em que Lutero se moveu, estudou, deu aulas,
participou de debates, integrou conselhos é marcado pelas mudanças ocorridas a partir do impacto da reforma na Igreja, o surgimento das novas
igrejas e o velho mundo medieval, ainda em grande parte devedor do modelo
eclesial antigo. Da resistência eclesial ao movimento da reforma, do Concílio e
das mudanças – com o surgimento da ordem dos jesuítas, da Contra Reforma, do
Concílio de Trento – seguiu-se à aplicação dessas propostas na sociedade.
A proposta de cidadania resultante da compreensão luterana
da Bíblia, da proposta de vida em comunidade, dos modelos de educação, da vida política e da jurídica perpetuados na Alemanha, criando regras para a vida
doméstica, o trabalho, o negócio e o trato com as autoridades, com espaço para
diferenças, divergências e conflitos.
Como toda obra de arte, o filme Lutero não pode dar conta do
conjunto da realidade – mesmo num período de quase 30 anos, entre o dia 31 e
outubro de 1517, quando fixou as 95 teses na porta da Schlosskirche, e sua
morte em 18 de fevereiro de 1546. Em todo o caso, esse homem medieval se
agiganta para dar conta do conjunto de mudanças que seu movimento provocou.
Como ensinou Gottfried Maron, “Lutero, este grande ser
humano alemão... não é um renegado ou rebelde porque o sistema estava pesado...
Ele desviou-se, porque o sistema não lhe dava o que sua alma precisava; ele não
dava o que a alma de seus contemporâneos precisava... Isto colocou um novo
pensamento no coração: justo por fé!” (Luther und die ‘Germanisierung des
Christentums’, p. 320), levando-o a retomar o pensamento paulino. É isso que o
filme nos mostra.
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