quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Reforma protestante: da igreja do palácio ao espírito


Antonio Carlos Ribeiro

Existem duas maneiras de refletirmos sobre a Reforma Protestante nestes seus 495 anos. A primeira é voltarmos a Wittenberg, cidade onde Lutero – um monge da Ordem dos Agostinhos e professor de Bíblia na Universidade – fixou suas 95 teses na porta da Igreja do Castelo, em 31 de outubro de 1517. A intenção era que fossem lidas pelo alto clero e a nobreza nas missas de Todos os Santos e Finados (1 e 2 de novembro), frequentadas pelo alto clero e a nobreza, e provocassem um debate. Conseguiu!


O motivo era o espírito inquieto, investigador e determinado desse padre e professor de teologia aos 34 anos que, diante da culpa e da morte, tornou-se intransigente a respeito da salvação e não conseguiu se conter diante do sistema das indulgências. O outro ingrediente era a Bíblia, que ele estudava nesta época com seus alunos, a partir do livro de Levíticos e da Carta aos Romanos.

Culto, rebelde e confrontado por um poder autoritário num universo absoluto, protestou. Era um passo decisivo e difícil, mas necessário. Como a intenção era reformar, não conseguiu prever os desdobramentos sociais, mas logo pagaria o preço por enfrentar a mais forte instituição da terra, com poder temporal – riqueza e exércitos – e espiritual.

A maior parte dos que peregrinam pela Saxônia atualmente querem ver a igreja, o púlpito, o túmulo, o liceu e a fortaleza de Wartburg, onde ele traduziu o Novo Testamento em oito meses, mantidos durante os séculos com alto custo. “Mas este não é o patrimônio da Reforma”, disse o prefeito de Wittenberg em 2002, “mas vocês, luteranos do mundo, que guardam o espírito do Reformador”.

Esse espírito, que tomou a forma da convicção de agarrar valentemente o real (das Wirkliche tapfer ergreifen) em Dietrich Bonhoeffer, levando-o a ajudar na fuga de judeus e cooperar com a resistência alemã ao nazismo, revela essa disposição de contestar a ordem dada, o pensamento definitivo ou a perda da salvação. Esse sequestro de todos os poderes, somados numa só instituição, dominando as instâncias da sociedade e até mesmo o sagrado, leva as pessoas à contestação, à negação e à desconstrução.

Em Lutero isso surge como um agarrar-se a Deus, já que nada há de mais absoluto, de mais definitivo e de mais último do que ele próprio. Mesmo que isso exija negar aquilo que o representa ou desconstruir a estrutura de poder que o sustenta. É aí que se entende o brado: “Deixem Deus ser Deus!”, porque se Ele é o amor, não estará contra nós; se é absoluto, não será controlado através da guerra; se é Castelo Forte, não nos abandonará à dor, ao escárnio ou à violência, porque onde estiver estaremos com ele!

Esse confronto legítimo, que Lutero soube associar à luta dos príncipes alemães, garantiu a existência desses que protestaram diante de Carlos V e se recusaram a participar da procissão de Corpus Christi, sendo chamados de protestantes. As igrejas que surgiram desse movimento foram chamadas evangélicas, no mesmo século que começou com uma igreja e, com a anglicana e a reformada, terminou com quatro, criando uma ruptura no cristianismo ocidental, com maior impacto do que o cisma oriental, no século XI.

Essa ruptura levanta perguntas até nossos dias, agora também estendidas à ordem que equilibra as forças no mundo ocidental. Gianni Vattimo admite crer na Igreja, porque a herdou. Mas se não fosse assim, indaga-se se deveria inventá-la. E constata não ter necessidade de uma igreja para ser religioso. Aí evoca Lutero, que criticava Roma “em nome do Evangelho e da Bíblia, não em nome de outro Evangelho ou outra Igreja”. E conclui: “necessitamos de um novo Lutero. Porém não sou eu”.

Na prática a Reforma nos fez pensar na liberdade, partindo da fé para todas as áreas da vida humana, denunciando o ab-uso do Sagrado como forma de controlar pessoas, sociedades e instituições. Na pós-modernidade as pessoas têm maior relutância em se entregar a uma fé porque “isso é a alma: a vocação pessoal, o interesse pela vida, o modo de ver o mundo. E, se alguém perde a alma, já não tem nada. O religioso é a multiplicidade e não a unidade absoluta”, observou Vattimo.

A pergunta hoje é: como anunciar o evangelho que liberta e ajuda na busca de sentido? A busca se dá na comunhão com Deus, já que instituição “não tem a última palavra sobre o sentido da história, muito menos seu domínio. Antes de possuir o sentido, é ele que a possui e ultrapassa infinitamente. A orientação em face do futuro continua aberta”, ensinou Brighenti, já que uma “instituição ou pessoa não têm o poder de encerrar a história. Têm, sim, a capacidade de atuar em favor da justiça, na perspectiva do Reino, e de inscrever um sentido parcial em seu movimento historicamente ambíguo”. Ser salvo pela graça, a partir da fé, significa em nossos dias confiar-se a Deus e buscar coragem para os dilemas que nos são trazidos.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

"Não nos entregaremos fácil", afirma Kaiowá de Pyelito Kue


Antonio Carlos Ribeiro

Brasília (ALC/Cimi) - Indígenas Kaiowá e Guarani das comunidades de Passo Piraju, Arroio Korá, Potreto Guasu, Laranjeira Nhanderu e, especialmente, Pyelito Kue, do Mato Grosso do Sul, cujo drama comoveu o Brasil e o mundo nesta semana de sociedades que trabalham com direitos humanos ao redor do mundo. Sua atitude firme diante do risco de despejo da aldeia gerou interpretações diferenciadas, a partir do clima tenso criado, entre elas a de um pacto de 'morte coletiva' de 170 pessoas, detacou a nota 1037 do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).


O jornalista Ruy Sposati entrevistou o líder Lopes ou Apykaa Rendy - Trono Iluminado, em Guarani - que é uma das principais lideranças de Pyelito Kue. Ele falou da situação da aldeia, dos problemas, expectativas e da carta que denunciou a situação e provocou diversas mobilizações internacionais.

A comunidade completa um ano de retomada do território no próximo mês, e de novo vive sob a tensão de decisões da Justiça que muda decisões, além de um ano de muitos problemas. "Não temos saída [da aldeia]. As pessoas que estão doentes não têm por onde sair. Não têm recurso. As crianças também não têm onde estudar. Não têm roupa. As cestas da Funai não estão chegando para a gente. Não temos atendimento da Funasa. Mas mesmo assim, nós estamos aqui", contou o líder.

Lopes denunciou ainda os riscos da região. "Estamos em um lugar apertado. Os fazendeiros não querem que a gente abra caminhos, não querem que a gente passe no meio do pasto. Nós atravessamos pelo rio", explicou. "Tudo acontece com a gente. Ameaças, não por indígenas, mas pelo próprio fazendeiro, ameaças pelos pistoleiros, ameaçando a gente. Por isso, nós guerreamos pela nossa terra", denunciou.

Sobre as denúncias de suicídio coletivo, Lopes explica a posição da comunidade. "Não, nós não iremos fazer isso", acrescentando que "se for para a gente se entregar, nós não nos entregaremos fácil. É por causa da terra que estamos aqui, nós estamos unidos com o mesmo sentimento e com a mesma palavra para morrermos na nossa terra. Esta terra é nossa mesmo!"

"Desde o começo que nós entramos lá, estamos firme", insistiu. "A comunidade falou que não vai desistir. Queremos retomar a terra que foi dos nossos avós, onde os nossos parentes morreram. Queremos realmente ocupar essa terra. Viveremos realmente neste lugar! Esta terra não é dos brancos, é nossa e de nossos antepassados. Se a gente perder a nossa vida será por causa da terra", insistiu Lopes.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Aceitamos o amor que cremos merecer


Antonio Carlos Ribeiro

Os traumas da infância não são enfrentados por razões como a inconsciência e a falta de estrutura e condições, registradas no corpo. Antes que ganhem dimensões de expressão, causam danos, provocam sofrimentos e se mostram nas dores da alma. Essa é a estória trazida pelo filme A vantagem de ser invisível, (The Perks of Being a Wallflower, comédia dramática dirigida por Stephen Chbosky, com Logan Lerman, Emma Watson, Ezra Miller e Paul Rudd, Estados Unidos) do mesmo autor do romance, em cartaz a partir de hoje.


Com a história toda ambientada no universo adolescente, a película conta a história de Charlie, um rapaz que tem sérias dificuldades de interação com os colegas da nova escola. Em meio a hostilidades que variam da colega que o chama de ‘Nada’ ao grandalhão que lhe tira um livro das mãos, rasga a capa e joga no chão, expressando mais que simples ingenuidade – sempre sensível – próxima mesmo da indiferença rude.

Ambiente de conflitos não assumidos e nem tratados, Charlie tem uma sensibilidade que se expressa pelo silêncio, pelo isolamento que se impôs desde o suicídio do amigo e pela paixão por Sam, meia irmã de Patrick, que agrega ainda a condição de homossexual, sempre um incômodo para quem se antecipou ao conceito (pré-conceito) e tem um volume de músculos inversamente proporcional ao do cérebro. O silêncio intelectual e a violência, sempre mais requisitada, completam o quadro de conflito tensionado.

Outro cenário em favor de Charlie, e em conflito com o conjunto, é que sua inteligência é percebida pelo professor de literatura. Este se inquieta porque o aluno responde as perguntas no caderno, sem levantar a voz. Isso provoca uma cumplicidade como a de sempre levar livros para casa. Também na contramão da turma. Com o correr do tempo, o professor faz sugestões, pede opiniões e indica novos autores, no ritmo da voracidade intelectual.

Mas os conflitos não lhe exigem pouco, o bullying cresce e a autoestima só está garantida no grupo que o acolhe. Assiste e depois participa de uma peça musical, substituindo o amigo, até que a relação homossexual com o colega gere um conflito familiar, que eclode numa briga de refeitório. Ao ver Patrick apanhando de três rapazes e Sam empurrada por um deles, Charlie agiganta-se emocionalmente, entra no conflito e enfrenta os agressores. O silêncio do grupo, em seguida, também é o seu, já que não lembra do que fez.

A obra ganha ares de atualidade nesta cidade, em que na maior e mais bem avaliada escola católica, um adolescente vítima de estresse continuado precipita-se do 5º andar, como a menina da música Pais e Filhos, do cantor Renato Russo. Drama cotidiano de pais e familiares, vez ou outra faz explodir conflitos, provocando culpas e interesses últimos, dos pais ao Ministério Público, mas logo com os adolescentes voltando a serem as partes mais fragilizadas pelas crises acumuladas.

O personagem chamou a atenção de quem leu o livro. “Ele fala tão naturalmente de como sua vida mudou em nove meses de amizade com Sam e Patrick, descrevendo tão honestamente todas as coisas que experimentou, que viveu e sentiu que a impressão que eu tinha era que as cartas foram escritas para mim”, suscitando sentimentos, especialmente quando “se descobre de certa forma o porquê de alguns bloqueios e rompantes de Charlie”.


A obra consegue segurar a densidade do drama, quando Charlie cresce emocionalmente, pega livros para as férias, não consegue esconder o amor pela moça de quem o namorado se aproveita,  e nem se aproveitar quando tem oportunidade, aceitando até ‘ser substituído’, ao entender que ela  aceita o amor que entende merecer, mesmo que isso provoque certo ‘lamento’.

A integridade dos três atores principais, os sentimentos que mobilizam a cada conflito, e o professor que desiste de mudar para Nova York porque ama as aulas e seus alunos, dão os contornos últimos da película que poderia ter efeitos especiais, explorar a sensualidade e contar uma história mirabolante, mas cujo diretor contentou-se em assegurar a humanidade e contar uma história tocante. 

Stephen Chbosky, autor do livro e diretor do filme é um autor norte-americano e roteirista. Ele levou ao telão o livro As Vantagens de Ser Invisível, publicado em 1999, entre muitas outras tarefas levadas a cabo na TV americana. Por não ser uma obra didática, não almeja educar o leitor ou ensiná-lo a lidar com os conflitos. Despretensioso neste sentido, Chbosky aceita o desafio de contar uma história. Sugiro assistir e apresentar sua opinião.

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=mZyNG6O7apg

sábado, 6 de outubro de 2012

A fúria da juventude, a repressão bestial e a arte de intensidade tropical


Antonio Carlos Ribeiro

A Tropicália atenuou parte da fúria da juventude, ousada e inteligente, frente à bestialidade da repressão. Ao lidar com os sentimentos, através de diversas formas de expressão artística e cultural, atenuou em pequena escala a desumanidade oficial, que quanto mais demente, menos causas tinha e sempre mais consequências. Esse conjunto de manifestações aparece no filme Tropicália (Direção: Marcelo Machado, Produção: Denise Gomes e Paula Cosenza, Roteiro: Di Moretti e Marcelo Machado, Trilha Sonora: Kassin, 82 min., Documentário, Brasil, 2012).


O Tropicalismo ou Movimento Tropicalista foi um movimento cultural surgido da influência de diversas correntes artísticas de vanguarda e da cultura popular nacional e estrangeira, o pop, especialmente o pop-rock e o concretismo. Tomou de empréstimo diversas formas das manifestações tradicionais da cultura brasileira a inovações estéticas radicais. Tinha grupos com objetivos comportamentais, que encontraram eco em boa parte da sociedade, sob o regime militar, em manifestações realizadas no final da década de 1960.

Tendo como maiores expressões Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, Os Mutantes e Tom Zé, o movimento tropicalista se mostrou principalmente na música, mas teve outras manifestações artísticas, como as artes plásticas, onde se destacou amplamente o artista Hélio Oiticica, o cinema, com destaque para o Cinema Novo de Gláuber Rocha, com as influências que sofreu, e o teatro brasileiro, no qual a grande dramaturgia surgiu nas peças de José Celso Martinez Corrêa, com traços tipicamente anárquicos.

Provavelmente a maior expressão do conjunto do movimento tropicalista foi a canção Tropicália, de Caetano Veloso. Mas o leque de participações artísticas inclui nomes como Capinam, Gal Costa, Gilberto Gil, Glauber Rocha, Guilherme Araújo, Jards Macalé, Jorge Mautner, Júlio Medaglia, Lanny Gordin, Os Mutantes, Rita Lee, Rogério Duarte, Rogério Duprat, Tom Zé, Torquato Neto, Waly Salomão, os mais expressivos.

As circunstâncias da ditadura – sistema autoritário, gente com baixa formação nos governos nomeados por eles, sem humanidade, sensibilidade e, sobretudo criatividade – expunha a Tropicália, até porque ela tinham qualidade. O movimento desperta a atenção não porque se oponha ao regime, mas porque enche os olhos do público, acostumado a coisas sem valor estético como armas, uniformes e AI5. Ao lado disso, figuras tão midiáticas quanto Gil e Caetano, que naturalmente despertaram a atenção.

O filme situa historicamente o fator tempo, recuando para contextualizar seus personagens, período de 1967 a 1969, que cobre um bastante conflituoso e no qual o movimento aconteceu de verdade. Assim, o início da década de 1970 e o exílio de Caetano e Gil na Inglaterra, além da repressão brutal, era uma forma do regime dizer que tinha as rédeas, aliás, uma imagem rural para lidar com um fenômeno culturalmente urbano. Ao focar alguns desses elementos o documentário mostra boa pesquisa e um quadro fiel das manifestações.

A obra não tem intenção didática, mas dar um perfil do conjunto, as manifestações, os principais artistas, a contradição da crítica e a junção desta com a manifestação dos estudantes secundaristas e universitários. O risco e omissão nos detalhes é uma consequência de cobrir um período curto, mas muito intenso de produção cultural, diante de um governo sem mecanismos de gestão do Estado e ameaçado pelo movimento estudantil.

A presença de intelectuais na Tropicália é perturbadora para o regime militar. Não apenas militares, mas mesmo agentes civis eram muito mal formados, o que os fragilizava. Entre os nomes já citados, agregam-se os do escritor José Agripino de Paula, do artista Rubens Gerchman, do músico Jorge Ben e de letristas como Torquato Neto e José Carlos Capinam.

Marcelo Machado faz composições de imagens que integram registros de documentários, reconstruções posteriores do período, notícias de jornais e revistas, as canções dos Festivais de Música, que reúne um significativo volume de informações. O movimento integrou ainda a Jovem Guarda, o cinema de Glauber Rocha, especialmente o filme Terra em Transe, os parangolés e instalações de Hélio Oiticica – que cunhou a expressão tropicália e o teatro de Zé Celso Martinez Corrêa, com a montagem da peça O Rei da Vela, com a linguagem antropofágica de Oswald de Andrade – ao incorporar estrangeirismos e recriá-las na língua nacional.

A montagem dos diversos fragmentos na obra deve ter sido prazerosa para Oswaldo Santana. Imagens, trilha sonora, recortes de noticiário, cartazes, fotos e depoimentos foram a matéria prima de Tropicália. Essas sequências, cadenciadas com o ritmo das músicas e os sinais letais da repressão dão o tom. A outra vem dos ‘devaneios’ reproduzidos através de cores psicodélicas na tela, as animações criativas e fotos de pessoas, situações e cenas que marcaram época. As imagens montadas vão te reconduzir ao fim dos anos 60. A emoção pode ser forte! Preparados?

http://www.youtube.com/watch?v=Icb1y0K_tPg&feature=player_embedded

Total de visualizações de página